“ -Que vai fazer agora? - Perguntou Sarah.Caracterizar Charles Bukowski como um velho bêbado louco é eufemismo. O alemão, naturalizado americano, é um dos maiores expoentes da literatura de seu tempo, além de ilustrar a realidade de sua época com crueldade atroz. A sociedade em Bukowski é hipócrita e suja, imoral e desigual. Mas, apesar de toda dimensão artística e crítica atribuída ao autor, não são esses elementos os almejados por ele.
- Sobre o quê?
- Quer dizer, o filme acabou mesmo.
- Oh, sim.
- Que vai fazer?
- Tem os cavalinhos.
- Além dos cavalinhos?
- Oh, diabos, vou escrever um romance sobre como se escreve um argumento e se faz um filme.
- Claro, acho que você pode fazer isso.
- Acho que posso.
- Como vai se chamar?
- Hollywood.
- Hollywood?
- Ééé...
E é isso aí.”
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Charles Bukowski (1920-1994) |
A narrativa de Charles Bukowsi é norteada por sua própria vida. Por meio de seu alter-ego Henry Chinasky, que protagoniza a maior parte de seus livros, o autor descreve com uma frieza algoz, com textos fragmentados e construídos com períodos curtos, a sociedade americana nos meados até o final do século XX.
Contudo, Bukoski não almeja ser crítico. Diferente dos realistas clássicos, esse não determina diferentes grupos sociais e suas contradições. Na verdade, o que Bukowski faz é descrever o mundo a partir de sua vida movida a álcool e libertinagem, naturalizando assim aquilo que pode ser visto pelo leitor como condenável. Cenas de estupro, agressão, e até de racismo são narradas ao longo de sua obra de forma banalizada, não como um deboche, mas como é visto pelo autor.
Isso se deve a certos elementos centrais em sua narrativa. Desde a temática até a estruturação do texto, Bukowski busca apresentar um mundo imoral e desestruturado. Em "Correios", seu primeiro romance, Chinasky é um empregado do serviço que dá nome ao romance. A partir de então, o protagonista vive um percurso conturbado de vida, passando por um término de um relacionamento, um casamento, um divórcio, um enterro, o vício proveniente do hipódromo, mulheres e mais mulheres, a gravidez de uma de suas namoradas, o nascimento de sua filha, a separação entre ela e o protagonista; para finalizar o livro com sua demissão no serviço de Correios e sua decisão de escrever um romance. Dessa forma, o livro segue um emaranhado de ideias desconexas que de alguma forma conseguem se conectar, refletindo a própria vida ao seu redor.
Para exemplificar essa desordem criada a partir de suas decepções - elemento recorrente dos escritores da "geração perdida" americana (Leia aqui um artigo sobre outro membro do grupo literário) - o escritor criou uma analogia ao redor dos hipódromos. Assim como escreve no romance "Hollywood";
Voltei ao hipódromo. Às vezes me perguntava o que fazia ali. E às vezes sabia.Toda a alma da obra de Bukowski está ligada ao conceito do dionisíaco, de Nietzsche. O filósofo cunhou o termo tomando como base Dionísio (ou Baco, na mitologia grega), o deus do vinho na mitologia romana, em que suas celebrações eram pautadas pelo prazer, sendo feitas a ele orgias e banquetes.
Entre outras coisas, aquilo me permitia ver grande número de pessoas sob a pior
luz, e isso me mantinha em contato com a realidade do que era feita a humanidade.
A ambição, o medo, a raiva, tudo estava ali. Há certos indivíduos característicos em toda pista de corridas, em toda parte, todo dia. Provavelmente me viam como um desses personagens, e eu não gostava disso. Teria preferido ser invisível. (...) O jogador médio joga diariamente duplas, exatas, triplas, hexas ou nonas. Acabam com as mãos cheias de cartões inúteis. Apostam na vitória, apostam no placê, apostam na mostra. Mas há apenas uma aposta, e essa aposta é para GANHAR. Isso alivia a pressão. A simplicidade é sempre o segredo para uma profunda verdade, para fazer as coisas, para escrever, para pintar. A vida é profunda em sua simplicidade. Acho que a pista de corridas me mantém consciente disso.
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"O triunfo de Pan", de Nicolas Poussin. |
Seguindo essa noção, Nietzsche estabeleceu o dionisíaco como o homem libertino. Bukowski, dessa forma, faz-se predominantemente dionisíaco, uma vez que apresenta todos os elementos supracitados. Mas além disso, Bukowski apresenta outro aspecto prezado por Nietzsche. O filósofo acreditava que o homem ideal - o Super-Homem ou o além-homem - deveria ser completamente despido das convicções morais, religiosas, familiares ou tradicionais. Uma vez rompida a barreira, esse homem tornar-se-ia um verdadeiro niilista.
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Friederich Nietzsche, filósofo e autor de "Assim falou Zaratustra", "O Anticristo" e outros. |
E de fato é isso que ocorre na literatura de Bukowski. Seus personagens, sendo despidos de qualquer senso de moralidade, tornam-se niilistas. No entanto, diferente do idealismo pregado por Nietzsche, Bukowski não apresenta elementos favoráveis a essa filosofia. A vida em seus personagens é sempre indiferente e melancólica; sendo retratada por meio do falso prazer do álcool, que serve apenas como escapatória covarde de suas misérias pessoais.
Por esses e tantos outros fatores que Bukowski se tornou o que é. Muito além de um velho bêbado maluco, o autor é um retratista de seu tempo, permeando os diferentes âmbitos sociais/ econômicos/ étnicos despido de qualquer máscara social, sempre claro e verdadeiro. Com seu completo desapego pela moral, Bukowski elabora personagens muito próximas ao conceito niilista, apesar de serem sempre defeituosos e problemáticos. Diferente de qualquer outro tipo literário existente até então, apoiou-se e baseou-se muito nos realistas, especialmente nos contistas e crônicos russos, e criou algo novo; ressuscitando o arquétipo do velho bêbado, como o excelente Jorge Amado o fez em Quincas Berro D'água. O novo criado por Bukowski é muito mais pela escrita dinâmica e ágil de seu texto fragmentado do que pela temática em si, apesar de apresentar outros tipos sociais pouco explorados.
Mas nada disso seria possível sem a capacidade de Bukowski de contar magníficas e sedutoras histórias. No final, ele buscava apenas entender como a vida pode ser tão complexa em sua simplicidade. E para isso, bebia, escrevia, e via cavalos.
Texto de Lucas Barreto Teixeira
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