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A hora da estrela - A epifania da morte

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré- história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.
 Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré- pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada funda em plena boca nossa. Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente – é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade. Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes. 

Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? A indecisão desse escritor, protagonista da história de Clarice Lispector, é um de seus mais fortes traços de personalidade. Transfigurada no corpo do narrador, Clarice escreve uma narrativa sobre a angústia de quem a cria, sobre o descaso da vida, com toques de existencialismo e colocando no papel tudo aquilo que ela, enquanto escritora, sentia, já no fim de sua vida. Afinal, Macabéa, nordestina franzina e sem-graça, possui relevância somente para aquele que a descobre ao narrar os passos de sua vida murcha e monótona. Adianto-me, no entanto, ao tentar explicar o que ainda nem foi enunciado. De certa forma, é assim que Clarice enxerga sua narrativa: um emaranhado de fatos consequentes e primordiais, tentando se conectar, formando algo próximo do sentido.

Clarice Lispector, autora de "A Hora da Estrela", "A Paixão segundo G. H.", "Laços de Família" e outros (1920 - 1977)
Tomarei a difícil missão de escrever um texto organizado e cronológico sobre a "Hora da Estrela". Caracterizo como "difícil missão" devido ao emaranhado de frases e pensamentos do narrador intruso ao longo do texto, desvirtuando o leitor e acrescentando detalhes em muitos momentos indevidos e inesperados. A surpresa, inclusive, é um grande elemento que Clarice toma em seus textos. A "Epifania"; a revelação dada ao leitor ao fim de suas histórias, além de, claro, surpreenderem o leitor, dão a ele uma conscientização que o leva à reflexão. Por conta disso, pode-se dizer que Clarice almeja essa reflexão própria, fazendo-nos sempre pensar ao fim de seus textos. A Hora da Estrela, no entanto, subverte esse papel reflexivo, e dá ao escritor, ao invés do leitor, a responsabilidade de divagar sobre os fatos.
Vale ressaltar, antes de explorar devidamente o livro, que a obra foi a última escrita por Clarice, publicado no mesmo ano de sua morte, em 1977. Esse elemento apenas serve para destacar a importância de a Hora da Estrela, não só apenas para a literatura nacional, como também para a vida da escritora. Afinal, ao fim da história, o narrador chega em uma conclusão crucial: em que a vida só é compreendida na morte. Adianto-me, novamente, e peço desculpas ao leitor pelo descuido. No entanto, já feitas as considerações iniciais, creio ser possível aprofundarmos na obra em si.
Já no(s) título(s) do livro, a tragédia é anunciada, além de ficar evidente alguns traços do escritor. Explico; "A Hora da Estrela" é apenas um título dentre vários outros, como "A culpa é minha", "Quanto ao futuro" e "O direito ao grito". Essa indecisão inicial já retrata o fluxo incessante de ideias que toma a cabeça do escritor, não sabendo ao certo se apenas um título poderia reunir toda sua angústia. Além disso, todos os títulos estão relacionados com o fim de Macabéa e com sua aparente "inexistência" quanto ao mundo ao seu redor. Durante o resto de meu texto, citarei alguns desses títulos na esperança de elucidar meu ponto.
Pois bem; após a apresentação de títulos, deparamo-nos com a "dedicatória do autor" e, entre parênteses, escrito: "Na verdade Clarice Lispector". E, com apenas um parênteses, Clarice já nos chama a atenção de que, apesar do narrador ser um homem e um personagem fictício, ela se colocou em sua pele, e sendo protagonista dessa história, narrando-a, almeja chegar em sua epifania de vida, apesar de saber que não vai conseguir responder todas suas dúvidas sobre a vida, o universo e tudo o mais.

E – e não esquecer que a estrutura do átomo não é vista mas sabe-se dela. Sei de muita coisa que não vi. E vós também. Não se pode dar uma prova de existência do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar: acreditar chorando.
 Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de livro inacabado porque lhe falta resposta. Resposta esta que alguém no mundo ma dê. Vós? É uma história em tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que eu também preciso. Amém para nós todos.

Suas indagações persistem nas páginas iniciais, percorrendo pelas frases do livro até o final. O primeiro questionamento do escritor é sobre a própria atividade de escrever. O discurso metalinguístico transcende sua própria existência, perpassando por todos os citados em sua introdução. Todos os músicos, como Chopin, Beethoven, Strauss e Bach, ao serem relacionados pelo místico - gnomos, anões, sílfides, ninfas... - entregam seu desejo de se elevar espiritualmente, mas inabilitada pela prisão terrena, ou, nas palavras da autora: Esse eu que é vós pois não ser apenas mim, preciso dos outros para me manter de pé, tão tonto que sou, eu enviesado, enfim que é que se há de fazer senão meditar para cair naquele vazio pleno que só se atinge com a meditação. Meditação não precisa de ter resultados: a meditação pode ter como fim apenas ela mesma. Eu medito sem palavras e sobre o nada. O que me atrapalha a vida é escrever.
Portanto, fica evidente seu desejo apenas de divagar e de meditar, sem preocupação com respostas ou algo do tipo. Por isso, "quanto ao futuro" foi escolhido como um dos títulos. O que nos espera no futuro? Ao mesmo tempo que Clarice pergunta tão entusiasmada, ela não deseja obter resposta. O que a move é a pergunta, e a pergunta apenas. Essa pergunta primordial é um dos mais belos elementos da arte e da filosofia em geral, e, sinceramente, merece um texto apenas para ela.
Mas, agora, devo parar de dar voltas para me atentar à epifania de Clarice. E para entendê-la, devemos entender o "direito ao grito" e o "nascimento da estrela". A estrela, na verdade, representa Macabéa, cuja história é narrada pelo escritor, servindo como ferramenta de se alcançar alguma elevação espiritual e transcendental. Maca é apenas uma "estrangeira" (de origem humilde, no Nordeste brasileiro, com infância difícil e desapegada ao luxo) em uma cidade suntuosa e grande demais para sua concepção de realidade. Realidade essa tão desprezível e simplória que cabe nos intervalos da hora do "Rádio Relógio". No entanto, a história não é sobre Maca.
Maca simboliza a ignorância e o descuido da vida. Maca, inclusive, acha que nunca irá morrer. Dessa forma, sua vida se torna mecanizada e opaca, sem qualquer prazer ou orgulho de viver. Isso apenas devido à sua falta de interesse no conhecimento existencial. E, aparentemente, Clarice tenta nos dizer que durante toda nossa vida, seremos ignorantes a ela. Apenas na morte de Maca, ao sair de uma consulta de certa cartomante, Maca compreende o valor de existir. E no mesmo instante, do outro lado mundo, um cavalo em resposta empinou-se em gargalhada de relincho.

Um gosto suave, arrepiante, gélido e agudo como no amor. Seria esta a graça a que vós chamais de Deus? Sim? Se iria morrer, na morte passava de virgem a mulher. Não, não era morte pois não a quero para a moça: só um atropelamento que não significava sequer desastre. Seu esforço de viver parecia uma coisa que, se nunca experimentara, virgem que era, ao menos intuíra, pois só agora entendia que mulher nasce mulher desde o primeiro vagido. O destino de uma mulher é ser mulher. Intuíra o instante quase dolorido e esfuziante do desmaio do amor. Sim, doloroso reflorescimento tão difícil que ela empregava nele o corpo e a outra coisa que vós chamais de alma e que eu chamo — o quê? 
Aí Macabéa disse uma frase que nenhum dos transeuntes entendeu. Disse bem pronunciado e claro: 
— Quanto ao futuro. 
Terá tido ela saudade do futuro? Ouço a música antiga de palavras e palavras, sim, é assim. Nesta hora exata Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas. O que é que estou vendo agora e que me assusta? Vejo que ela vomitou um pouco de sangue, vasto espasmo, enfim o âmago tocando no âmago: vitória!

A morte de Macabéa é apenas mais um desses acontecimentos cômicos, tamanho o absurdo cosmológico, mas também é a hora de sua revelação. Com a cartomante, aprendeu valorizar o futuro, algo sempre adiante mas sempre presente. E apenas na morte, compreendeu a vida. E, da mesma forma, Clarice sabia que ia entender a sucessão de absurdos que chamamos, carinhosamente, de vida, não muito depois. Por isso, Clarice não se compromete com a resposta, satisfazendo-se com a pura reflexão (meditação).
"O direito ao grito", outro título do livro, é o direito de se expressar ante a opressão cosmológica que nos aterroriza e nos agoniza. Quando nada parece ter sentido, basta gritar, expressar-se, ou o que seja. Macabéa não sabia gritar, e, por isso, morreu calada. Clarice Lispector, morreu presenciando a hora da estrela. O escritor, ao fim, apenas pega a "saída pela porta dos fundos", lembra-se que toda a gente morre, ascende um cigarro e volta a casa.
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.



Texto de Lucas Barreto Teixeira

Comentários

  1. Clarice...sempre tão profundo. Não é qualquer um que consegue entender sua linguagem, quanto mais fazer uma análise. Curti!

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