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Blade Runner e a filosofia do absurdo

Particularmente, considero Blade Runner a obra cinematográfica mais impactante e profunda de ficção científica "cyberpunk". A película de Ridley Scott, baseado no livro "Androides sonham com ovelhas elétricas?", do escritor norte-americano Philip K. Dick, aprofunda o ambiente psicodélico onde o "caçador de androides" (blade runner) Rick Deckard vive e caça replicantes para gerar sua renda. Com diálogos profundos e abordando temáticas filosóficas, Blade Runner persiste até hoje no conhecimento geral como um marco no cinema mundial.

Philip Kindred Dick, autor de "Androides sonham com ovelhas elétricas?", "O vingador do futuro" e muitos outros romances e contos (1928 - 1982)
Antes de abordar o filme em si, sinto-me na obrigação de falar sobre o romance que originou a obra. "Androides sonham com ovelhas elétricas?" é o resultado de uma mente caótica e amargurada, buscando conforto em drogas, experiências libertinas e na construção de suas distopias algozes. O mundo criado por Dick, desde as primeiras cenas que dão início ao livro, retrata uma sociedade doente, dependente de produtos sintéticos e com a única ambição de adquirirem mercadorias de alta patente, simbolizado nos raros animais verdadeiros existentes em lojas especiais. O agente Deckard, tendo uma ovelha elétrica como substituta de sua falecida ovelha, apoia todas suas decisões morais e profissionais no intuito de comprar uma novo animal orgânico, verdadeiro e genuíno, de modo com que se sinta privilegiado e superior aos seus vizinhos.
A sociedade distópica baseia seu status social a partir do consumo. Dessa forma, a maior ambição possível dos indivíduos nela inclusos é a posse de artigos de luxo, contribuindo com a manutenção da ordem política alheia aos problemas sociais provenientes de diversas situações tais como a superpopulação, conflitos militares, repressão religiosa e, principalmente, a questão do trabalho.
No filme Blade Runner 2049, continuação espiritual do clássico de 1982, uma frase definiu toda relação de dominação pelo trabalho de Philip Dick.

Every leap of civilization was built on the back of a disposable workforce.


Niander Wallace, o antagonista da longa de 2017, interpretado por Jared Leto, sendo um megalomaníaco e detentor de grande poder político e econômico, defende, assim, que para a sociedade evoluir, faz-se necessário dominar uma mão de obra. Essa justificativa pauta bem a criação dos chamados "replicantes" - androides com funções práticas para auxiliar na exploração de colônias espaciais. Aos replicantes, então, por serem frutos da necessidade do trabalho forçado, são fornecidas alterações fisiológicas, de modo com que pudessem apresentar maior desempenho na cadeia produtiva.

No entanto, essas mesmas ferramentas de trabalho criam, dentro de uma comunidade reprimida pelo trabalho, uma espécie de sociedade mutualista, passando a simular e criar emoções e desejos. A existência de replicantes, portanto, passa a ser um problema aos seus exploradores, uma vez desenvolvida uma mentalidade sensível e humana.


Roy Batty, replicante interpretado por Rutger Hauer na longa de 1982.

Philip K. Dick passa a escrever, então, um embate moral de Deckard, tendo uma vida tão artificial e sendo forçado a exterminar vidas tão lindas, apesar de breves. O desenvolvimento dos replicantes, no livro, é elemento secundário e despercebido, pois o autor dá foco ao agente policial. Deckard, pouco a pouco, ao se deparar com o grupo de Roy Batty, líder de um grupo de replicantes que escaparam das colônias espaciais para a Terra, começa a perceber e a questionar as incoerências existentes no sistema de repressão aos androides. Afinal, por que replicantes não poderiam ter tanta ambição em vida quanto ele?

No filme de Ridley Scott, é dada uma maior importância a esses questionamentos de Deckard. Já no fim da longa, o monólogo de Roy Batty evidencia a luta e o apego pela vida, por mais sintética que seja, por seres mais humanos do que seus criadores.

I've seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhäuser Gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain.


A sociedade, corrompida por valores mercadológicos e vazios, já não mais ambiciona seu bem mais precioso: a vida. No entanto, por terem seus direitos renegados, os replicantes se apegam a ela com vigor e afinco. Afinal, os replicantes possuem data de expiração curta e definida. Ao saber exatamente quando irão morrer, a morte se transforma na motivação deles. O que sempre guiou a humanidade é a inevitável morte. Dessa forma, em uma sociedade sem temor a ela, guiada por uma religião única pregando uma vida eterna, a existência dos indivíduos se torna sem propósitos.
Um filósofo argelino do século XX, ao escrever sobre o suicídio, define que todos nós possuímos um propósito, por mais absurdo que ele seja. Albert Camus, ao escrever sobre o mito de Sísifo (ser condenado a empurrar todos os dias uma pedra até o pico de uma montanha, onde a pedra cede à força de Sísifo e rola pelo caminho de volta, obrigando-o a ficar preso em um trabalho inútil), afirmou que todos os homens tem como propósito vidas como a de Sísifo, sem relevância e inúteis. Contudo, ao ser aceita essa condição, poder-se-á viver bem consigo mesmo e até feliz.

Albert Camus (1913 - 1960)
A filosofia do absurdo de Albert Camus é facilmente aplicada com os indivíduos da sociedade distópica de Kirk, incluindo-se nesse grupo o próprio agente Deckard. O blade runner percebe que sua existência é tão absurda que simplesmente ignora essa realidade, buscando alegria na artificialidade da compra e venda de artigos de luxo. Todavia, os replicantes apresentam outra interpretação possível para o dilema se Sísifo. Eles, ao perceberem o absurdo da vida, passam a viver tentando reverter a situação, buscando mais tempo de vida para poderem entender o significado e a relevância das coisas e como elas são e por que ocorrem.
Dessa forma, basta-nos apenas refletir sobre nossa própria existência. Será que vivemos almejando relevância ou propósitos vazios? No retrato contemporâneo de nossa sociedade, conseguiríamos nos enquadrar mais na artificialidade dos humanos ou na humanidade dos replicantes? E, por fim, o que será que mais nos preocupamos: em ovelhas elétricas em nossos quintais ou em nossas lembranças sendo perdidas no tempo?
Perdidas... como... lágrimas... na chuva...

Texto de Lucas Barreto Teixeira

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