Pular para o conteúdo principal

A verdade do alienista e a massa alienada

Foi em algum canto de Itaguaí onde Simão Bacamartes teve a enfadonha ideia de construir um hospício. Homem da ciência, virtuoso, correto, modesto e amigável, resolveu aproveitar sua vida conforme era prescrito pelos seus diplomas de professor, médico, mestre, doutor e tudo o mais. Assim, reúne todos seus conhecimentos e constrói uma casa cujas janelas verdes viriam a emoldurar quadros de insanidades de todos os tipos.
É provável que você, leitor, já tenha escutado essa história antes. "O Alienista", de Machado de Assis, é um dos mais conhecidos textos produzidos pelo autor. A premissa, amplamente difundida na cultura geral, gira em torno de um célebre médico que decide estudar o comportamento humano e se utiliza do método científico para deduzir as incontáveis formas de como se manifesta a loucura. Rodeado pelo humor crítico e sutil que apenas Machado sabe fazer com perfeição, Simão enfrenta crises morais durante a narrativa que se misturam com a própria história de Itaguaí. Sempre apoiado em seu cientificismo exagerado, mistura a cura com o objeto de estudo e chega em uma conclusão fatal: o normal precisa ter algo de louco; e os loucos são os virtuosos e considerados como sendo os normais.
Ao se colocar como louco, Machado põe em questão a ambiguidade e a impossibilidade de delimitar onde a razão termina e a loucura começa, definindo esta própria dicotomia como inerente de todo homem. Geralmente, as interpretações variadas de "O Alienista" variam nesse ponto. No entanto, ao reler recentemente o conto (novela?) um pequeno detalhe me chamou bastante a atenção. Talvez acadêmicos e teóricos já tenham discorrido longamente sobre a temática que desejo abordar, mas por um desejo de pura limpeza da alma gostaria de expor esses pensamentos que vagam e se chocam com minhas ideias. 
Machado de Assis, um dos maiores escritores nacionais de todos os tempos.
Em "O dom Casmurro", um dos maiores romances de Machado, Bentinho e o autor muitas vezes se misturam, pois sempre que lhe é conveniente ele insere com delicadeza sua visão crítica. Por outro lado, a história de Bacamartes e da Casa Verde é narrada do ponto de vista da população de Itaguaí, que várias vezes crítica e em outras elogia o velho recluso e enfurnado em seus livros. E ao pensar em toda a produção textual de Machado, esse velho recluso se destaca como sendo a voz do autor; não só em Dom Casmurro como em Brás Cubas também. 
Portanto, qual seria a intenção de Machado ao retratar tantas críticas à figura que a ele é vinculada, ao mesmo tempo que não o dá voz, assim como Capitu em Dom Casmurro? E é essa a pergunta que verdadeiramente atormentou-me. Mas talvez, eu tenha alguma ideia do que ele desejava com tal escolha narrativa. O que Machado estava tentando nos dizer era apenas a forma de como a verdade é vista. Por meio do cientificismo de Bacamartes, como foi dito, ele relativiza todos seus atos, por mais nefastos que sejam, por verdades falsas criadas por ele mesmo. É o dilema de 1984, da manutenção da certeza absoluta de um sistema, e o dos quadrinhos de Alan Moore: "who watches the watchmen?" 
Ilustração do quadrinho icônico "Watchmen", que narra o papel de super-heróis em um contexto realista.
Machado, na condição de crítico, peca no exato ponto em que toda sua crítica recai. A ilusão de que se é o dono da verdade é a perdição de Simão e, logo, a dele próprio. Por isso que o Alienista, em meio de todas suas críticas e considerações, é o texto mais humilde do escritor realista. Da mesma forma que Bentinho negligencia o pensamento de Capitu, e Brás Cubas repulsa todos ao redor, Machado faz consigo mesmo enquanto na condição de Simão Bacamartes. O que Machado de Assis faz é romper o relativismo da verdade, assumindo suas falhas e as expondo. Dessa forma, Machado renuncia à verdade do alienista e busca a verdade dentro da massa alienada.
Contudo, desejo deixar com esse texto uma questão pertinente aos escassos leitores que permaneceram até o fim para ler minhas considerações. Será que buscamos esse exercício em nosso cotidiano? Será que o homem moderno vive aberto às críticas que por acaso possam vir a recair em sua arrogância? E o mais importante: quantos de nós seríamos como Bacamartes; arrogantes, insensíveis e que condenam os outros por puro capricho?

Texto de Lucas Barreto Teixeira

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A hora da estrela - A epifania da morte

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré- história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.  Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré- pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor de dentes que perpassa esta histór...

1984 - Vigiar a loucura, punir a arte

Era um dia frio e ensolarado de abril, e os relógios batiam treze horas. Winston Smith, o queixo fincado no peito numa tentativa de fugir ao vento impiedoso, esgueirou-se rápido pelas portas de vidro da Mansão Vitória; não porém com rapidez suficiente para evitar que o acompanhasse uma onda de pó áspero. O saguão cheirava a repolho cozido e a capacho de trapos. Na parede do fundo fora pregado um cartaz colorido, grande demais para exibição interna. Representava apenas uma cara enorme, de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, com espesso bigode preto e traços rústicos mas atraentes. Winston encaminhou-se para a escada. Inútil experimentar o elevador. Raramente funcionava, mesmo no tempo das vacas gordas, e agora a eletricidade era desligada durante o dia. Fazia parte da campanha de economia, preparatória da Semana do ódio. O apartamento ficava no sétimo andar e Winston, que tinha trinta e nove anos e uma variz ulcerada acima do tornozelo direito...

Os Incríveis II - Análise crítica

Em dezembro de 2004, víamos pela primeira vez a família mais incrível nas telas do cinema. Abordando temas familiares e sociais com um viés crítico, a longa de Brad Bird apresentou ao mundo uma família de super-heróis imersos em uma perspectiva pessimista de invisibilidade social por conta da exclusão dos heróis proposta pelo Estado fictício do filme. Apesar de sua aparente densidade, marcada pela trilha sonora brilhante e fulminante de Michael Giacchino, entretanto, os alívios cômicos e as cenas de ação roubam o fôlego da platéia que, entusiasmada, aguardou 14 anos para uma continuação de uma das mais belas animações da Pixar . E, por fim, fomos recompensados pela espera. ALERTA: SPOILERs A SEGUIR "Os Incríveis II" começa como o anterior acaba. Ao saírem de uma competição de atletismo de Flecha, a família de heróis se depara com um vilão colossal que ameaça destruir o mundo da superfície. Apesar de ainda serem considerados ilegais pelo governo vigente, os protago...