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Irmão do Jorel - Um contraste existencial

"Queria apenas tentar viver aquilo que brotava espontaneamente em mim. Por que isso me era tão difícil?"
 Essas palavras, encontradas logo no início do romance "Demian", de Herman Hesse, ilustram, com exatidão, a premissa principal da animação nacional "Irmão do Jorel". Passando-se em uma cidade pacata do Brasil, o desenho retrata a infância de irmão do Jorel, um garoto que, apesar de sua criatividade e sua originalidade, vive sempre à sombra de seu irmão, Jorel, um adolescente popular, galanteador e verdadeiro ídolo dos habitantes locais. Vivendo assim, incapaz de impor sua personalidade, sendo conhecido apenas por sua relação familiar e não por sua individualidade, irmão do Jorel tenta lidar com suas frustrações, seus anseios e suas angústias.


Apesar de ser um desenho infantil, "irmão do Jorel" é uma obra repleta de simbologias, metáforas e interpretações socioculturais da realidade brasileira. A organização militar, retratada por palhaços autoritários e tiranos, além da empresa "Shostners Shostners", uma coorporação multimilionária e o espaço opressivo da escola; todos os cenários, personagens e situações são apresentadas para apresentar mais que uma história, uma realidade. Em um ambiente hostil para uma criança, em que a mera tarefa de comprar uma lata de "Sprok maçã" em uma loja do outro lado da rua de sua casa pode ser um grande desafio, irmão do Jorel perpassa por diversas situações que, uma vez interligadas, compõem uma vasta e rica busca de si mesmo.
O grande desafio da arte brasileira, em seu princípio, era a de encontrar uma identidade própria, desvinculada das correntes europeias e articulando todo o potencial nacionalista. Nesse sentido, a autora Clarice Lispector, em uma análise subjetiva, passa do macro para o microcosmo, passando de uma busca cultural para uma busca individual e íntima - a busca por si mesma. Nesse grande impasse existencial, irmão do Jorel também busca por si, embora não de forma consciente, aguardando seu inerente destino.
Não obstante, assim como Clarice utilizava-se de epifanias, ou seja, situações que interfiram de tal forma em uma personagem que lhe faça passar a questionar-se sobre suas percepções ou concepções anteriores, para revelar algo oculto no próprio interior de suas personagens, a animação também as apresenta de forma gradual e sensíveis. É assim, ao menos, que a relação entre irmão do Jorel e Lara, sua melhor amiga, desenvolve-se. Ao irem de encontro a um arco-íris, as falas aparentemente inocentes da menina mexem com tamanho tato com ele que toda sua visão de mundo, concebida por amigos e irmãos antiquados, remodela-se, revelando ao garoto todo o potencial das mulheres ao seu redor, fazendo com que ele passe a ver sua mãe, suas avós e as próprias amigas de forma diferente, não mais como "o sexo frágil", passando inclusive a valorizar aspectos femininos em sua personalidade, até então reprimidas.
Lara, a melhor amiga de irmão do Jorel, é uma peça chave em toda a série. Afinal, apenas com ela o menino consegue ser quem de fato é, já que a amizade não depende de outro objeto senão o zelo que um guarda pelo outro. Representada pela própria cor dos calçados dos personagens (as botas amarelas de irmão do Jorel e roxas de Lara), a relação dos dois está vinculada ao complemento de um ao outro. Nesse sentido, Lara estabelece uma ponte que liga irmão do Jorel a ele mesmo.
Dessa forma, um simples desenho infantil consegue não apenas ser um dos retratos mais fiéis da realidade brasileira contemporânea como também uma obra complexa da busca de um indivíduo por si mesmo. Uma obra cômica, sensível e que valoriza a subjetividade. Em tempos onde todos buscam se espelhar em um ícone, é importante perceber que podemos nos espelhar em nós mesmos, de forma genuína e desapegando-nos de fórmulas pré-estabelecidas. Em tempos como o nosso, é importante um irmão do Jorel para nos lembrarmos quem nós realmente somos.

Texto de Lucas Barreto Teixeira

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