“Sabe, doutora, ontem eu tive um sonho com você. Sonhei que eu estava aí, e você aqui, no meu lugar. Eu me senti muito bem sendo uma branquinha como você, rica e inteligente. Mas você não gostaria de estar em meu lugar. Não é mesmo, doutora?”
“Praça Paris” é um desses filmes nacionais brilhantes que surgem de vez em quando nos cinemas brasileiros. Dando continuação aos excepcionais filmes do ano passado, como “Bingo” e “Entre Irmãs”, Lúcia Murat (Quase dois irmãos, Brava gente brasileira) dirigiu um filme digno dos mais sinceros elogios, apesar de ter certos defeitos, como um ritmo de lentidão constante, que prejudica o clímax do filme, e algumas cenas mal-exploradas, chegando a ser por vezes confusa. Apesar disso, o roteiro, que conta com a contribuição de Raphael Montes, entrega uma percepção da realidade brasileira contada por meio de dois olhares bastante diferenciados: a de uma estrangeira, Camila (Joana de Verona), e a de uma moradora de comunidade, Glória (Grace Passô); e apresenta saídas criativas para se representar cenas de violência, subjetivas e, principalmente, as cenas onde é representada a empatia.
A empatia é a grande força motriz em que se apoia todo o filme. A tese da pesquisa de Camila (um estudo sobre a imparcialidade e a distância emocional entre o cliente e o especializado no tratamento do mesmo), psicóloga portuguesa trabalhadora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) é vivenciada não apenas em sua pele como também em sua consciência. Ao tratar Glória, ascensorista moradora do Morro da Providência, ela passa a absorver os traumas e o medo da paciente, passando de uma pessoa equilibrada e sensata para neurótica e com mania de perseguição.
Em parte, de alguma forma o arco narrativo de Camila ilustra a principal tese pregada pelos naturalistas: o Determinismo. O naturalismo, corrente literária proveniente do realismo, baseia-se nas ideias de adaptação ao meio em que o indivíduo é submetido, retratando o homem como um verdadeiro animal irracional. O determinismo é ilustrado pela frase de Camila, ao falar sobre sua avó, que havia se matado em solo brasileiro:
“Minha família sempre disse que o Brasil tinha matado minha avó.”
Na literatura nacional, não há melhor exemplo do naturalismo que Aluísio de Azevedo. Em “O Cortiço”, sua mais célebre obra, é narrada, entre outras, a vida de um certo casal de portugueses, Jerônimo e Piedade, que sentem uma saudade imensa da pátria, cantando seus fados nas noites tristonhas da cidade do Rio de Janeiro do século XIX. Em determinado ponto, entretanto, Jerônimo se depara com Rita Baiana, uma linda mulata que se transforma na perdição do português. A paixão pelo calor tropical causou no português saudosista uma imensa mudança, fazendo-o se tornar preguiçoso e leva-o a abandonar sua esposa e filha.
Sendo Rita Baiana a personificação do Brasil, o autor realizou uma analogia em que relaciona o comportamento com a influência do território em que vive. Sendo essa a principal característica do naturalismo, pode-se dizer que tanto Camila quanto sua avó mudaram devido a estadia na “cidade maravilhosa”. Com tanta violência e absurdos sociais, Camila perde sua civilidade e torna-se irracional como os cariocas. Esses, inclusive, são retratados por animais, como todos os namorados de Rita Baiana, assim como ilustrado na história contada pelo parceiro da psicóloga:
“Um médico judeu, fugindo da Segunda Guerra, veio ao Brasil. Quando ia desembarcar, viu um negro comendo um animal no chão, com as mãos ensanguentadas. O médico então disse que não poderia ficar em um lugar tão incivilizado como aquele. Soube-se depois que o animal era apenas uma jaca.”
O preconceito estrangeiro recaindo nos nativos, transformando-se depois em medo irracional e neurose animalesca, proveniente da convivência em outras terras, é outra característica do Determinismo e, portanto, do naturalismo. Ainda assim, em “Praça Paris”, isso não se daria sem a função empática. Afinal, convivendo com a memória de sua avó, eternizada em seu retrato na praça que dá nome ao filme, o suicídio não seria a última saída para Camila.
Outro elemento importante ao filme é a analogia e a relação entre Camila e a Praça Paris. Como dito anteriormente, o único retrato de sua avó tinha sido tirado nessa praça. A Praça Paris foi uma das mudanças fundamentais na reforma implementada por Pereira Passos, no início do século XX. A reforma, visando transformar a cidade do Rio de Janeiro em uma “nova Paris”, ampliou ruas, derrubou construções velhas e realmente deu um novo espírito, mais jovem, à cidade. No entanto, para tal expulsou diversos residentes de cortiços e moradias populares, descritas já por Aluísio de Azevedo, e não os forneceu garantias habitacionais. Como consequência, as primeiras favelas foram surgindo, e agora são lar de muitas pessoas como a ascensorista Glória. A Reforma Passos é tão importante ao filme que a temática das reformas urbanas se apresenta em outros contextos, como a revitalização do Píer Mauá, sendo esse o período em que a narrativa se passa, em que novamente um processo de elitização foi imposta aos moradores da região, expulsando-os de um bairro agora gentrificado.
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Cinelândia após a Reforma Passos, com o Teatro Municipal recém-inaugurado ao fundo. |
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Píer Mauá após revitalização, na ocasião das Olimpíadas no Rio de Janeiro. |
O suicídio de Camila, o final trágico, é a única forma que a portuguesa tem de vencer a empatia. Como poderia viver sentindo aquilo que muitos sofrem ao morar nesses morros? Como poderia viver tendo tanta consciência da hipocrisia que até então havia a guiado na vida?
A morte simboliza sua volta à sua terra, como simbolizado pela cena das ondas se chocando na costa portuguesa, sendo essa a cena inicial da película. O suicídio é a única forma com que consegue superar tantos traumas. E o único culpado de toda essa situação é a empatia, quando essa devia ser, na verdade, a solução; uma forma de entender o outro e tentar garantir a todos condições iguais.
Mas, talvez, para Camila isso teria sido difícil demais. Afinal, quantos fazem, no lugar dela, algo para melhorar a condição do próximo?
Texto de Lucas Barreto Teixeira
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