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Belchior, Eça de Queiroz e a juventude de cada um

Em 1976, o cenário musical brasileiro recebeu uma de suas mais belas composições artísticas. "Como nossos pais", música composta por Belchior e com sucesso legitimado pela voz de Elis Regina, fala sobre desilusões da juventude, de sonhos, fracassos e repressão. Afinal, em 1976 o Brasil passava por um de seus mais conturbados e tenebrosos anos, regido por um governo autoritário civil-militar. Com a forte repressão proveniente desse período, os jovens, revolucionários e grandiosos em suas mentes pequenas e inexperientes, perderam seu principal gosto de existir: a liberdade.

Antônio Carlos Belchior; ou "Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes", o maior "nome" do MPB, literalmente. (1946 - 2017)
Para explicar a temática linda e monumental de "Como nossos pais", destacarei breves e pontuais elementos presentes no livro "Os Maias", de Eça de Queiroz, um dos maiores escritores realistas de Portugal. Nessa obra, o autor narra a jornada trágica da família "Maia", uma tradicional família burguesa. A família Maia, no entanto, sofre um desencanto em sua linhagem em uma construção familiar desfuncional ao longo de três gerações. De forma concisa, resumirei a trama dessa grande história, ignorando, por hora, pois muito há o que ser dito sobre a obra-prima do português, fatos e personagens icônicos deveras interessantes.
Afonso de Maia, o primeiro membro da família, cresce e desenvolve-se em um homem louvável e íntegro, sempre acompanhando as novas ideias inglesas e as incorporando. De seu matrimônio, resultou-se o nascimento de seu filho, o Pedro de Maia, criança muito mimada e apegada à mãe que, ao falecer, deixou seu filho traumatizado e frágil. A cura, para Pedro de Maia, foi se apegar a uma forte relação romântica com Maria Monforte. Dessa relação, nasceram Maria Eduarda e Carlos de Maia, protagonista de todo o livro de Eça. 
A tragédia final do livro é construída ao longo da vida de Carlos de Maia. Ainda recém-nascido, a mãe deixou ele e seu pai para fugir com seu amante e sua filha - Maria Eduarda. Vivendo uma imensa angústia pelo abandono e pelo descaso, Pedro de Maia atira em sua própria cabeça, dando a Afonso de Maia a guarda de seu filho. Dessa forma, avô e neto criam uma relação familiar em que Afonso cria Carlos a sua maneira, repetindo, de certa forma, um mimo parecido com aquele que sua esposa fornecera a Pedro. 
A trama evolui, toma formas, apresenta personagens, cenários, situações inusitadas, até que Carlos, já crescido, formado médico, mas sem conseguir desempenhar seu ofício, compartilhando com seu amigo João da Ega uma posição de claro descaso com o trabalho e as responsabilidades, encontra uma mulher na qual cai em amores. O relacionamento entre eles se concretiza e gera frutos de amor e ternura. Contudo, certa noite, João da Ega descobre que a companheira de Carlos Maia era, na verdade, sua antiga irmã, Maria Eduarda, a abduzida pela mãe.
O que Eça de Queiroz tenta nos passar com sua história é, além de todas as críticas reunidas ao longo da trama, a inocência juvenil acompanhado da fatalidade herdada pelos pais. Sem nem ao menos ter conhecido seu pai, Carlos era tão romântico e desocupado quanto Pedro de Maia, tendo diversas características e eventos em comum. Portanto, o autor português já nos mostrava alguns pontos interessantes sobre a juventude. Primeiro; os jovens são movidos por ideias de renovação e de egoísmo de mudar o imutável, apesar de parecerem muitas vezes ociosos e despretensiosos. Segundo; herdamos as coisas e boas e, principalmente, as coisas ruins das velhas gerações. E, por último, tornamo-nos, a partir da incapacidade da mudança, em nossos próprios pais.

Eça de Queiroz, autor de clássicos como "Os Maias" e "Primo Basílio" (1845 - 1900)
E da mesma forma, Belchior retrata as heranças da juventude. No entanto, diferente do evidenciado por Eça de Queiroz, que de certa forma era uma auto-crítica, uma vez que não atuava diretamente nas mudanças do país, apesar de criticá-lo e apresentar novas ideias, Belchior tira do jovem esse arquétipo de despretensioso e irresponsável. Em sua poesia, o compositor coloca o jovem trabalhando para construir algo melhor e mais duradouro.

Viver é melhor que sonhar
No início da canção, Belchior explicita seu desejo de romper com aquilo que é dito com aquilo que é vivenciado. O eu-lírico dessa canção, ao dizer que:


Não quero lhe falar

Meu grande amor

Das coisas que aprendi
Nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo 


na verdade tenta dividir o real com o imaginário, o idealizado. Em uma espécie de lembrança, o eu-lírico se propõe a vivenciar novamente suas experiências na juventude, para preservar a memória dos fatos.
Ao prosseguirmos com a letra, chegamos em uma certa estrofe em que o eu-lírico retrata a repressão em que fora submetido durante a juventude.


Por isso cuidado, meu bem

Há perigo na esquina

Eles venceram e o sinal
Está fechado pra nós
Que somos jovens 


Novamente, vale ressaltar o período histórico em que a música foi composta. Era uma fase ditatorial e repressora, oprimindo as novas ideias e não deixando com que os jovens pudessem se expressar. Ao menos, é isso que Belchior deseja passar em sua mensagem. O sinal fechado para nós é uma metáfora das oportunidades de mudança e de representatividade dos jovens.
Mais adiante, Belchior, no entanto, evidencia chances de superação dessa rigidez.

Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências
Não enganam não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém

Você pode até dizer
Que eu tô por fora
Ou então
Que eu tô inventando

Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem 

É claro que tanto Eça de Queiroz quanto Belchior compartilham a semelhante ideia de sermos aquilo que nos originaram. Se nascemos, espelhamo-nos em alguém, e geralmente nos espelhamos em uma figura mais austera e mais velha. São os mesmos ídolos, compartilhados entre as gerações. Porém, enquanto o escritor português acreditava que nada muda devido à incapacidade do jovem de realizar atos transformadores na sociedade, Belchior acreditava que, por não serem ouvidos, os jovens acabam sendo silenciados pela opressão e pelo tradicionalismo. Mas, se realizarmos uma breve reflexão, notamos que, talvez pelo silenciamento ou pelo descaso juvenil, as ideias jovens nunca são colocadas em prática. E, com isso, essas ideias são carregadas pelas novas gerações, gerando uma linhagem inteira baseada nos mesmos pensamentos e, portanto, sendo como os pais. Dessa forma, é por isso que deve-se saciar essa juventude íntima, que não precisa ser arrastada, e sim, evoluída e, por fim, geradora de frutos. Por isso, não podemos calar essa juventude de cada um de nós; pois o novo sempre vem...


Texto de Lucas Barreto Teixeira

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