Certa vez, escutei que a essência da literatura dita clássica estava na atemporalidade de seus temas. Até hoje, ao ler sobre a inveja em Shakespere, os dilemas em Dostoiévski, ou até mesmo a ironia em Machado, o leitor é capaz de se identificar com as situações ali propostas. Baseado nessa preposição, comecei a me perguntar em quais narrativas contemporâneas se poderia encontrar essa chamada "atemporalidade", visto que as obras de hoje hão de permanecer pelos anos que virão.
Inveja, amor, ciúme, ira... toda a história precisa de um tema, uma problemática na qual os personagens se veem envolvidos e que instiga o leitor. Ilíada é uma história de amor, traição, perda e fome pelo poder; Crime e Castigo sobre miséria e culpa; Dom Quixote sobre loucura e desilusão. É claro que há algo de diferente nas obras destacadas quando comparadas a outras, contemporâneas ou não, com a mesma temática, seja a estética, a maestria na escrita ou pela rela relevância histórica. De qualquer forma, é inegável o fato de que, até hoje, tais narrativas ainda falam com seus leitores.
Quando li "Floresta é o Nome do Mundo", da escritora Ursula Le Guin, tive um sentimento muito semelhante aos que tive ao entrar em contato com as supracitadas. Esse é um desses livros que transforma a escrita soberba e seu contexto histórico em uma narrativa atemporal. Desconstruindo o arquétipo de Pocahontas, a autora escreve uma literatura anti-imperialista a partir de um planeta colonizado por humanos extrativistas, onde a salvação não vem de um colonizador misericordioso, mas de um esforço conjunto dos colonizados para, a fim de salvar seus costumes e suas vidas, expulsar os invasores.
Por mais que paródias sempre foram muito comuns ao longo da história, são poucos aqueles com maestria necessária para desconstruir um gênero e transformar em algo memorável. Sem dúvidas, por conta de todos os temas ali abordados, a obra de Le Guin se apresenta como atemporal, despertando esperança e determinação aos leitores. Enquanto gênero, aliás, a ficção científica apresenta uma grande variedade de narrativas que podem ser consideradas atemporais, como Ghost in the Shell. Enquanto representante do subgênero "cyberpunk", a obra não apenas desperta dilemas que sempre aparecem ao longo da epistemologia, como também traz algo de novo a uma discussão antiga sobre a vida e seu propósito. Além delas, consigo lembrar, em outros gêneros, de alguns contos de Rubem Fonseca, as poesias de Ana Cristina Cesar e romances de Mia Couto que poderiam ser considerados atemporais... mas isso, necessariamente, significa que tais textos deveriam ser considerados como "superiores" aos demais?
Enquanto conceito, tal atemporalidade poderia ser descrita enquanto algo específico de sua era que pode ser dito por todas as eras, evoluindo discussões passadas com uma nova perspectiva. Nesse sentido, um novo Dom Casmurro nunca poderia ser escrito, mas também não deveria ser escrito. A razão pelo qual nos agarramos em tais obras, é porque reconhecemos seus valores e queremos passá-los adiante, não reescrevendo o passado, mas fazendo-o ser sempre relevante. Tomemos a obra machadiana, por exemplo, e pensemos quantas obras dali foram feitas, de poemas a peças, teorias como as de Veríssimo até romances como as de Ana Maria Machado.
De toda forma, é interessante pensar se apenas ao se encontrar atemporalidade os textos se tornam relevantes. Sinceramente, eu não acredito que seja o caso. Certas narrativas não se propõem a ser algo além de uma boa história, ou apenas uma reflexão mais íntima e necessária. Afinal, com tal atemporalidade, é necessário sacrificar certos atributos que tornam o texto mais envolventes com o público de seu tempo histórico. Assim, uma busca pelas narrativas de hoje que poderão se tornar universais amanhã poderia apenas servir de exercício e mera especulação.
Texto de Lucas Barreto Teixeira
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