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Manuel Bandeira - A eterna convivência com a morte

Das poucas certezas que temos, a morte é a mais fundamentada. Todos nós vivemos esperando o dia em que nossas vidas cheguem ao fim. Por conta do sentimento torpe derivado dessa constatação, muitos tentam se reconfortar com ilusões vãs e esperanças vazias. A religião, as drogas, as ideologias; parece que tudo em que acreditamos serve para apenas nos reconfortar e nos fazer esquecer da verdade universal: A Morte.
Manuel Bandeira foi um exemplo vivo de nossa convivência diária com a morte. Quando muito jovem, descobriu-se com tuberculose, após ter perdido seus pais. Mudou-se então, de Recife para o Rio de Janeiro, onde, com medo da morte, viveu enclausurado em ruelas e becos da Lapa. Inclusive, foi por conta de suas moradas que escreveu os poemas do beco.
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? O que eu vejo é o beco.
Sua relação íntima com a morte, contudo, fica evidente com uma análise cronológica de sua obra. Manuel Bandeira certamente consolidou sua importância literária durante o período modernista, quando teve maior produção escrita. No entanto, o autor teve como início de sua carreira uma fase claramente simbolista. O simbolismo, movimento derivado do rigor formal do parnasiano, foi característico pela relação onírica entre o ser e a alma. Augusto dos Anjos, no Brasil, e Baudelaire, na França, foram os grandes representantes do simbolismo, tendo como tópico recorrente a morte. No início da literatura de Bandeira, fica evidente sua tendência simbolista.

DESENCANTO
 Eu faço versos como quem chora
De desalento. . . de desencanto. . .
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente. . .
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.

Sempre isolado em si mesmo, na segurança cálida do beco, Manuel Bandeira desenvolveu uma fina afinidade com a morte, sua companheira. Alguns de seus poemas, inclusive, retratam uma certa doçura na morte, uma beleza pálida e sombria. Ao cortejá-la, Bandeira desejava relativizá-la, de modo com que não tivesse dificuldades em aceitá-la.

O HOMEM E A MORTE
O homem já estava deitado
Dentro da noite sem cor.
Ia adormecendo, e nisto
À porta um golpe soou.
Não era pancada forte.
Contudo, ele se assustou,
Pois nela uma qualquer coisa
De pressago adivinhou.
Levantou-se e junto à porta
– Quem bate? Ele perguntou.
– Sou eu, alguém lhe responde.
– Eu quem? Torna. – A Morte sou.
Um vulto que bem sabia
Pela mente lhe passou:
Esqueleto armado de foice
Que a mãe lhe um dia levou.
Guardou-se de abrir a porta,
Antes ao leito voltou,
E nele os membros gelados
Cobriu, hirto de pavor.
Mas a porta, manso, manso,
Se foi abrindo e deixou
Ver – uma mulher ou anjo?
Figura toda banhada
De suave luz interior.
A luz de quem nesta vida
Tudo viu, tudo perdoou.
Olhar inefável como
De quem ao peito o criou.
Sorriso igual ao da amada
Que amara com mais amor.
– Tu és a Morte? Pergunta.
E o Anjo torna: – A Morte sou!
Venho trazer-te descanso
Do viver que te humilhou.
-Imaginava-te feia,
Pensava em ti com terror…
És mesmo a Morte? Ele insiste.
– Sim, torna o Anjo, a Morte sou,
Mestra que jamais engana,
A tua amiga melhor.
E o Anjo foi-se aproximando,
A fronte do homem tocou,
Com infinita doçura
As magras mãos lhe cerrou…
Era o carinho inefável
De quem ao peito o criou.
Era a doçura da amada
Que amara com mais amor. 

 Contudo, Bandeira permaneceu enclausurado - e vivo. O autor envelheceu e, por 82 anos, levou uma vida isolada e fechada. Sua libido se manifestara por várias vezes, como é observado em sua obra "Carnaval", em que é criada Pasagárda, um lugar fantástico em que o autor pode manifestar todos seus desejos. E, assim, também deu início a sua fase modernista, com poemas de versos livres, utilizando-se da linguagem falada e com uma temática nova, sem abandonar sua relação com a amada morte.
A partir de então, Manuel Bandeira se tornou um dos maiores nomes do modernismo brasileiro, tendo vivido por quase todo século XX e inspirando diversos escritores contemporâneos e os que vieram depois dele. Ainda assim, apesar de tentar superar o passado e esquecê-lo, como fizeram os modernistas, Bandeira até o fim de sua vida teve em sua alma o simbolismo presente. Ao morrer, talvez tenha encontrado conforto nos braços de sua amada, ou talvez tenha se arrependido de ter passado sua vida na prisão dos becos. Mas, certamente, sua poesia possibilitou com que vivesse além de sua clausura. Penetrando na alma da literatura e do coração de seus leitores, sua poesia o permite viver até hoje.


Texto de Lucas Barreto Teixeira





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