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O mito da caverna de Platão em The Wall

I want to go home
Take off this uniform and leave the show
And I'm waiting in this cell because I have to know
Have I been guilty all this time?


A construção narrativa em muitos casos segue arquétipos definidos anteriormente. A tragédia grega, principal fonte desses arquétipos, está recheada com temáticas que posteriormente foram - e ainda são - adaptadas. O mito de Édipo, por exemplo, serviu como base para romances de Eça de Queiroz, Balzac, Flaubert, e muitos outros, assim como os heróis gregos serviram para ser criada a "Jornada do Herói", termo estabelecido por Joseph Campbell ao comparar diferentes histórias como "Senhor dos Anéis", "Star Wars" e outros.
Um dos mais importantes arquétipos estabelecidos na Grécia Antiga, no entanto, não foi por meio da tragédia, e sim, pela filosofia. Platão, ao estudar e observar a sociedade grega da época, criou uma analogia em que definiu a ignorância - ou ao menos, como os indivíduos são condicionados a ela.

Platão foi um filósofo e matemático que viveu em Atenas entre 427/428 e 347/348 antes de Cristo.

Para explicar o mito da caverna de Platão, contudo, tomarei a liberdade de pegar emprestado a poesia de Roger Waters e do conjunto "Pink Floyd". Em "The Wall", álbum lançado em novembro de 1979, a banda conta, misturando poesia e melodia, a história de vida de um homem reprimido e cativo de seus próprios medos. A partir de seu nascimento, em "In the Flash?", a vida é comparada com um show, com sentimentos sintéticos e com uma forte dose de catarse. No entanto, por conta do abandono paterno, a repressão escolar e a autoridade materna, o homem ergue em sua volta "O Muro", uma metáfora que simboliza seu afastamento à realidade mundana e a construção de sua própria solidão.

Da mesma forma, Platão assim constrói sua caverna. Dentro dela, vivem sujeitos acorrentados, vendo silhuetas do fogo nas paredes da caverna. Por terem vivido nesse ambiente, consideram as sombras projetas a realidade. O conformismo gerado por esse afastamento da realidade é a fonte da ignorância, mas não é necessariamente culpa daqueles que vivem dentro da caverna. Por terem sido condicionados a isso, e por não terem tido estímulos a pensar por si mesmos, acabam destituídos de sua consciência. No caso de "The Wall", o homem foi condicionado a construir o muro por conta de seus traumas e de seus medos. E, por ter desenvolvido insegurança, casou-se cedo com uma mulher que posteriormente o traiu.
Nessa ocasião, o homem se tornara angustiado, vivendo sinteticamente como músico e com o auxílio de drogas. Por isso que, em "Goodbye Blue Sky", o mundo já não tinha cores, e em "One of My Turns" é descrito o homem com a pele cinza e desgostoso. Mas a traição da mulher simbolizou a quebra de sua segurança dentro do Muro, fazendo-o perceber as lacunas do mesmo, em "Empty Spaces", e fazendo-o perceber que ele não é indestrutível.
Assim como a dúvida surge neste homem, Platão faz surgir em um dos indivíduos presos na caverna, ao soltá-lo de seus grilhões. Inicialmente, ele fica confuso e não sabe ao certo como agir, vendo sua realidade sendo questionada. Posteriormente, entretanto, ele resolve se dirigir até a saída da caverna, e se depara com o "mundo dos vivos". Inicialmente, o sol o cega, mas quando se acostuma com a claridade, ele conhece tudo o que há e que existe e se maravilha. Assim que descobre a realidade, ele resolve contar para todos que estavam dentro da caverna.
Em "The Wall", no entanto, o processo de se libertar dos grilhões é mais doloroso. Após a traição, o homem percebe que estava sendo controlado pelas drogas que consumia e pelo funcionalismo artificial criado a partir de seu Muro. Após isso, o homem se agarra em uma catarse que o faz destruir o quarto de hotel, tentando se libertar da caverna. Em "The Show Must Go On", no entanto, o homem se depara com uma situação intransigível, e é levado por guardas para um show, para garantir a outras pessoas que permanecessem controladas pelos sentimentos sintéticos da vida.
A partir de então, descontrola-se com tudo o que até então fora imposto a ele e torna-se ele mesmo autoritário, metamorfoseando-se em um líder militar responsável pela destruição e pela conquista. Novamente, o homem estava fornecendo aos outros os mesmos elementos que o fizeram erguer o muro. Até que, em "Stop", ele se dá conta do que estava fazendo até então.

I want to go home
(Eu quero ir para casa)
Take off this uniform and leave the show
(Tirar esse uniforme e abandonar o show)
And I'm waiting in this cell because I have to know
(E eu espero nesta cela porque eu preciso saber)
Have I been guilty all this time?
(Estivera eu culpado por todo esse tempo?)


O homem então se encaminha para um julgamento ("The Trial") e se depara com todos os seus traumas: sua mãe, o diretor do colégio e até a esposa. O julgamento dessa música se aproxima muito mais com um julgamento moral que ele faz de si mesmo, como se estivesse observando as sombras projetas na parede, que compunham sua realidade, e estivesse verdadeiramente se questionando quanto à integridade dela. Por fim, ele recebe sua pena, e precisa derrubar o muro.
"Outside the Wall" simboliza a saída da caverna após uma vida inteira de mentiras e vãs ilusões. Solto de seus grilhões, consegue ver novamente o céu azul e se depara com a realidade, e não com a ilusão conformista a ele imposta. No entanto, na analogia de Platão, o homem resolve voltar para a caverna para compartilhar sua descoberta da realidade. Só que, ao fazê-lo, o homem é taxado como louco, e passa a viver em um mundo em que apenas ele sabe o que é a realidade, tendo a consciência de que todos os outros ainda acreditam nas sombras bruxuleantes da caverna. 
Da mesma forma, quando o muro cai, um último verso exprime seu estado de espírito.

Isn't this where...?
(Não é aqui onde...?)

Particularmente, interpreto esse último verso como a consciência da realidade: todos estamos presos em nossos Muros; todos estamos presos na caverna. A imposição de uma verdade artificial mais cômoda do que nos espera "lá fora" nos faz negligenciar tudo de errado que existe. Desse modo, permanecemos em um estado de êxtase perene, iludidos em um conforto inexistente, egoísta e cruel. 
Platão, portanto, convida-nos a libertar-nos dos grilhões, assim como Roger Waters clama que derrubemos o Muro, não importe os custos. A realidade é mais preciosa do que o conformismo social imposto desde os primórdios até hoje em dia. Dessa forma, faz-se realmente necessária uma reavaliação de como nos comportamos e como nos relacionamos com a vida. Afinal, não podemos deixar com que os tijolos nos construam, mas sim, devemos parar e questionar a sombra à nossa frente; a sombra bruxuleante, volátil, negra e distorcida.

Texto de Lucas Barreto Teixeira


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