Todos devem concordar comigo quando afirmo que poucas coisas são tão divertidas quanto uma boa história quando contada em uma roda de amigos. Particularmente, possuo verdadeiro fascínio pela arte de contar fatos extraordinários ocorridos em uma vida tão ordinária. A famosa (ou enfadonha) figura de "Quem conta um conto aumenta um ponto" é a melhor quando se tenta expressar com gestos pitorescos e expressões exageradas as situações cômicas que rompem com a monotonia do cotidiano.
Ora, e quem melhor para entender minhas palavras que o próprio brasileiro; criado nas crônicas e nos contos que tomaram conta de nossa cultura literária? Desde Machado de Assis, escrevendo um diálogo entre burros enquanto puxam bondes e sobre intelectuais da Rua do Ouvidor que descobrem o golpe militar de 1889 por meio de cocheiros melhores informados, a cultura de anedotas tupiniquins foi surgindo. Então, com Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Stanislaw Ponte Preta, Fernando Veríssimo e outros contemporâneos a eles, essa tipologia textual alcançou um ápice. Retrato do povo brasileiro, essas crônicas e anedotas objetificavam mostrar e ilustrar o cotidiano, com textos muitas vezes cômicos e divertidos, escondendo críticas em suas entrelinhas. Mas, mesmo com tantos cronistas e críticos em nossa sociedade, acabamos nos fechando a bolhas sociais que limitam essas conversas em rodas de amigos se limitarem, muitas das vezes, em discussões banais e superficiais.
O realismo russo, estilo que se desenvolveu durante o século XIX, além de ter denunciado as imensas disparidades sociais no país, trouxe para a literatura nomes que até hoje agregam valores aos herdeiros do estilo, incluindo nossa própria literatura. Tchekhov, por exemplo, era um médico que escrevia crônicas que visavam apontar a miséria humana e os contrastes vigentes no período pré-revolucionário. Em sua extensa obra, escreveu sobre a submissão dos servidores públicos, o enaltecimento por conta de títulos e até sobre a fome extrema, uma vez que viajou para zonas periféricas extremamente pobres para retratar essa faceta do país.
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Anton Tchekhov, médico e cronista russo. |
Um de seus contemporâneos realiza feito semelhante uma pequena novela de sua autoria. "Uma Anedota Infame", de Dostoiévsky, narra uma noite de um servidor público de alta patente. O homem, tendo sido convidado no início da estória por um outro de semelhante patente, acaba embriagando-se e resolve desandar São Petersburgo à fora. No meio do caminho, depara-se com o casamento de um de seus subordinados, um sujeito humilde, de baixíssima reputação e patente, pobre e casado por necessidade de obter um dote.
A partir desse ponto em diante, a narrativa se desdobra com mais alguns personagens, algumas bebidas compradas por um alto preço, danças e diversões, até que o enaltecido protagonista cai duro no assoalho da casa de seu subordinado, embriagado em demasia. Algumas semanas depois, já no trabalho, o protagonista cede à vergonha e morre, subitamente.
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Fiódor Dostoiévsky (1821 - 1881) |
Ao titular sua obra, Dostoiévsky considera-a infame, banal.
Mas não há banalidade em sua narrativa, pois ao ponderar sobre o reflexo social
de sua época, sua novela torna-se um escrito crítico e revelador, apesar de
conservar um caráter tão cômico e popular. Mas, afinal, se nem um livro descrito
pelo próprio autor como enfadonho é, de fato, dessa forma, tudo o que se produz
poderia ser considerado literatura? Afinal, o que faz uma história se tornar
relevante ou não?
A resposta dessas perguntas é a mesma, e está oculta nas
próprias pretensões dos autores.Tanto Tchekhov como Dostoiévsky se empenharam
em denunciar a sociedade e apontar como suas falhas poderiam ser superadas, de
mesmo modo como vieram a fazer todos os autores nacionais citados
anteriormente. A relevância de seus escritos estão, portanto, em seus
propósitos e em suas consequências. Por outro lado, enfadonho seria se os
autores quisessem apenas divertir o leitor, assim como fazemos ao contar
anedotas de nosso cotidiano em mesas de bar.
Por isso que a contextualização ao se analisar um texto
literário se faz tão importante. Não há como entender a relevância de um texto
sem entender suas pretensões. E é esse tipo de estrutura que move a arte
literária e a permite alçar patamares tão grandiosos e perenes.
Imagino apenas como eram as conversas na roda de amigos com
essas figuras. Imaginem só, quanto poderíamos aprender e informar somente
escutando o outro, contando casos cômicos e pitorescos, mas talvez com um
mínimo de relevância. Assim, talvez, a superficialidade do cotidiano poderia se
tornar mais harmoniosa, podendo ser, até mesmo, mais poética.
Texto de Lucas Barreto Teixeira
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