Dostóievski é, provavelmente, o mais influente escritor do realismo russo. Com suas palavras afiadas e sua visão crítica da sociedade russa, contou histórias brilhantes envolvendo a miséria e os excluídos do sistema de classes então vigente. Em “anedota infame”, o autor critica a relação entre os poderosos e os pobres. Já em “Os irmãos Karamasov” e em "Demônios", a convicção moral e ideológica é colocada em crise com o questionamento da realidade e das práticas sociais. Mas é em “crime e castigo” que Dostóievski encontra espaço para ter sua obra-prima, recheada de angústia, dor e conflitos morais.
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Fiódor Dostoiévsky (1821 - 1881) |
“Crime e castigo” é um título auto-explicativo. Com ele, Dostóievski determina bem que ocorrerá um crime que terá como consequência uma punição. E desde o início da narrativa o crime aparece explícito ao leitor. Raskólnikov, o protagonista, é um homem sem riqueza, alimentando-se com restos e adiando ao máximo o pagamento de seu aluguem, além de ter abandonado estudos por conta da falta de dinheiro, com pensamentos conflituosos em sua cabeça. Afinal, tramava um assassinato.
Tendo arquitetado todas as situações possíveis em seu imaginário e preparado todos os pré-requisitos, bastava apenas esperar a oportunidade perfeita para assassinar uma velha agiota com quem negociava a fim de, vendendo as últimas relíquias herdadas, conseguir dinheiro o suficiente para sobreviver. Ainda assim, Raskólnikov hesitava. Faltava a ele uma última fagulha de bravura, vinda por intermédio de um velho bêbado.
O pedinte, servidor público maltrapilho, conta toda sua história de vida, passando pelo casamento miserável que o prendia à vida, por sua esposa acostumada aos luxos que a abandonaram e por sua filha, Sônia Marmeladov, que prostituía-se para garantir renda mínima para a sobrevivência da família. Raskólnikov, vítima fatal da lábia do bêbado, ainda foi arrastado para a casa velha e pobre da família.
Mergulhado em um oceano de miséria insensível e perverso, Raskólnikov decidiu dar procedimento ao seu plano.
Esse personagem, que anda até a casa de sua vítima, representa uma geração de jovens cansados pela miséria e pelas parcas condições de vida em São Petesburgo e no resto da Rússia, de uma maneira geral. O assassinato, portanto, simboliza uma forma de protesto social. Mais à frente da narrativa, inclusive, há um diálogo envolvendo outros personagens, com formação acadêmica avançada, em que se discute o banditismo social. Esse termo, de acordo com o historiador Hobsbawm, define uma forma de protesto social contra as organizações tradicionais proveniente de camadas pobres da sociedade, muitas vezes em estado de miséria. Dessa forma, pode-se dizer que Raskólnikov, assassinando a agiota, que representa os sovinas, simbolizaria uma manifestação das camadas baixas contra o capital e os membros de alta elite que contribuem com estado de miséria.
No entanto, essa interpretação está, no mínimo, incompleta. Realmente, ao se fazer uma interpretação apenas do Crime do romance, poder-se-á chegar à conclusão semelhante. Contudo, Dostóievski ousa e dá um passo a mais nessa análise comum em pensadores marxistas e utópicos.
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"Os Bêbados" ou "Festejando o São Martinho", de José Malhoa. |
Então, Raskólnikov surpreende o leitor ao desferir na agiota golpes com uma machadinha, matando-a de forma brutal e violenta. Eis o crime, pré-anunciado no título da obra. Há de se inferir, portanto, que o castigo, consequência de seus atos, virá a seguir.
Realmente, o castigo de Raskólnikov ocorre no fim do romance. Ele se vê preso em um campo de trabalho forçado, tendo de cumprir uma extensa pena. Mas não creio que o castigo de Dostóievski esteja tão distante do Crime. Afinal, entre a morte da agiota e a prisão de Raskólnikov foram escritas linhas e linhas de culpa, amargura e terror. E são essas linhas a verdadeira punição do Crime horrendo.
O abatimento moral da consciência pesada de Raskólnikov acaba se revelando como fonte de delírios é imenso pesar para o homem. Por inúmeros capítulos, Raskólnikov tenta lidar com a culpa enquanto é forçado a viver normalmente. E, unindo-se a todos esses elementos, Raskólnikov também tenta justificar seus atos com uma desculpa filosófica, a qual haverei de comentar ainda mais adiante. Dessa forma, Raskólnikov encontra solução para sua incontrolável dor apenas ao se agarrar na figura de Sônia Marmeladov. Sônia, por ser associada a uma figura ainda mais deplorável que o próprio, passou a ser sua âncora moral, uma espécie de sufrágio pelos seus atos, uma vez que convive com um “ser mais abominável” que ele.
Todavia, Raskólnikov peca ao pensar dessa forma. Sônia, na verdade, revela-se como uma grande mulher, de imensa sensibilidade e de extremo tato. Ainda assim, o estigma que ela carrega pelo ofício a ela imposto a acompanha em todos os pequenos detalhes. Sônia, entretanto, ao invés de procurar mudar esse estigma ou tentar superar essa condição, submete-se apenas às imposições, conformando-se com sua realidade. Para Raskólnikov, portanto, Sônia pode ser considerada como uma pessoa ordinária.
Uma pessoa pode ser classificada como ordinária ou extraordinária dependendo de seu potencial transformador da realidade ao redor. Ao menos, é dessa forma como o protagonista divide os indivíduos. E é a partir dessa divisão social que ele defende suas atitudes.
De acordo com Raskólnikov, as pessoas ordinárias são aquelas que seguem as leis vendadas por uma espécie de contrato social, fazendo-as aceitarem tudo que ocorre ao redor sem que haja qualquer questionamento do ato em si. Já as pessoas extraordinárias pertencem a uma minoria destinada a reger a massa ordinária, colocando em vigor seus vontades e renegando os acordos pré-estabelecidos. Para ilustrar sua tese, é dado o seguinte exemplo: um ladrão mata para poder sobreviver. No entanto, por ser ordinário, o ladrão é submetido a julgamentos que o condenam a penas legais. Já um líder militar, como Napoleão, também precisa matar - e nesse caso, milhares - para poder conquistar territórios e difundir suas ideias. E ao invés de ser condenado, Napoleão é saudado como um tremendo herói.
Logo, Raskólnikov, tendo ciência de ser ordinário, elabora um assassinato para tentar se tornar extraordinário. O que Dostóievski tenta nos passar com essas ideia é que a nossa sociedade é conformista. Por nos conformarmos com a imposição de contratos sociais, vivemos alheios aos abusos diários que sofremos, aceitando todos os estímulos externos sem questionar ou reagir. Raskólnikov, vendo-se imerso em uma sociedade conformista, tenta assassinar a agiota para se livrar dos grilhões do conformismo. O que ele percebe, entretanto, é que mesmo assim ele permanece sendo mais um indivíduo alienado e vazio. Tanto que a culpa do assassinato e o medo da culpa o consomem lentamente, corroendo seu espírito e seu corpo.
Esse castigo subjetivo e psicológico encontra seu fim com Sônia e no cárcere. Sônia, personificação do conformismo, trouxe Raskólnikov de volta à sua realidade. E o cárcere simboliza sua submissão à sociedade conformista, que o engloba e o torna apenas mais um novamente.
Contudo, faço algumas indagações: Por quais motivos a sociedade nos faz conformistas? É possível subverter essa realidade? É necessário subverter essa realidade?
Afinal, ao não nos preocuparmos com os absurdos da vida, tornando-nos alienados, podemos viver felizes. Construímos uma felicidade artificial, é verdade, mas ainda assim é felicidade.
Pessoalmente, prefiro escutar a opinião do próprio Dostóievski. Quando o protagonista tenta se libertar dos grilhões dessa sociedade, há ameaça de pensamentos insanos tomarem conta de sua cabeça. Então a loucura seria a chave para conseguir êxito nessa operação? Não se costuma dizer que a linha entre genialidade e loucura é tênue?
Pois então, que enlouquecemos.
Texto de Lucas Barreto Teixeira
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