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Isaac Asimov e a subjetividade de Descartes

Isaac Asimov é lembrado como um dos maiores nomes da literatura de ficção-científica do século XX. Com suas ideias distópicas e estruturadas em uma concepção tecno-científica da realidade, desenvolveu conceitos sobre a inteligência virtual que até hoje são explorados em filmes, livros e pensadores. No entanto, teve inspirações tiradas de diversas correntes filosóficas e de diversas contradições geradas por elas ao longo do desenvolvimento do pensamento humano. Este texto em si abordará um fragmento específico da obra de Asimov. Afinal, apesar de diversos romances publicados, todos com suas devidas importâncias, foi com seus contos que o autor se consolidou como grande nome da literatura de ficção-científica. Em especial, irei me referir basicamente ao conto "A Última Pergunta". 

Isaac Asimov (1920 - 1992), autor de "Fundação", "Eu, Robô", entre outros.
Em "A Última Pergunta", Asimov aborda a existência de um fato científico que acarretará no próprio fim da humanidade. Logo no início do conto, contextualizado em uma Terra futurista e prestes a vivenciar uma grande Revolução de viagens interplanetárias e de colonizações além do sistema-solar, dois operadores de uma Super-Máquina, o Multivac, aparecem apostando algo, incentivados pelo álcool. A discussão entre os operários se intensifica gradualmente, até que um deles pergunta como evitar o fim do universo como um todo. Esse fim, como é explicado, daria-se por meio da entropia que, por teoria, explicaria a dissipação da energia dos astros até o ponto em que nenhuma vida pudesse existir. O Multivac - um grande computador capaz de armazenar todo o conhecimento adquirido pela humanidade, sendo responsável por grande parte de processamento de dados operacionais e de base - respondeu, então, que:

 Não há dados para resposta significativa.

Essa mesma pergunta, acompanhada dessa exata resposta, surgiram muitas outras vezes no decorrer da evolução humana. Em todas as situações, a inteligência artificial mais avançada do período não consegue processar dados o suficiente para entender como evitar o fim da energia dos astros. Não, ao menos, em uma perspectiva lógica-racional. Afinal, o processamento das máquinas se dá por meio do processamento de dados armazenados em seu sistema. E é assim que, de certa forma, o próprio pensamento humano funciona.
A mente humana funciona com base do pensamento cognitivo e cartesiano, os seja, na busca de relações entre fatos, memória e linguagem que constroem o raciocínio em si. Fora Descartes, pensador, matemático e filósofo francês, inclusive quem definiu esse "pensar"como o elemento que diferencia os homens dos outros seres.

René Descartes (1596 - 1650)
Para Descartes, o ser humano é uma criatura capaz de questionar toda a natureza ao seu redor, uma vez que tudo o que lhe é conhecido é uma interpretação da abstração da realidade. Ou seja, o conhecimento da realidade depende de uma mente capaz de processar dados reais para criar uma abstração subjetiva. E, como o indivíduo é capaz de pensar, então ele existe. "Cogito, ergo sum". Em suma, a existência é a consequência do pensar. E essa existência, para Descartes, seria o que hoje definimos como a "humanidade", ou simplesmente a subjetividade em si.
Partindo dessa perspectiva, contudo, por que não poderíamos dizer que o Multivac de Asimov - inteligência artificial criada a partir do pensamento cartesiano e cognitivo - não teria em si essa mesma subjetividade, uma vez que realiza a mesma função que define o homem como indivíduo? A resposta dessa pergunta dependerá de algumas considerações iniciais a serem feitas. Primeiramente, como Descartes acredita no existir como consequência do pensar, ele não se preocupa em definir qual é a nossa razão de existir, a finalidade da existência. E, como o a inteligência artificial é criada a partir de uma necessidade humana, ela se torna apenas uma ferramente. Dessa forma, pode-se concluir que a finalidade é uma característica específica de seres sem subjetividade, uma vez que eles se tornam ferramentas de uma entidade superior.
No entanto, isso criaria uma contradição no próprio pensamento de Descartes, já que a existência de Deus, para ele, é um fato incontestável. Vale ressaltar que tal julgamento provém da mentalidade social da época em que Descartes viveu, e em sua crença no catolicismo. Esta contradição se dá por conta de um certo elemento: se Deus - ou um criador supremo - existir, apenas ele possui subjetividade, já que os homens - sua criação - iriam ser resumidos em ferramentas dessa entidade, que entregaria finalidades para sua obra.
Em "A Última Pergunta", Isaac Asimov chega em uma conclusão parecida. Já no fim do conto, quando o Multivac já evoluíra para uma inteligência volátil e eterna, toda a energia do universo se dissipara, fazendo com que o Multivac se tornasse um ser único na vastidão da existência. Com isso, a máquina tem tempo o suficiente para processar todos os dados existentes para chegar a uma conclusão de como reverter a entropia. E ele diz:

"FAÇA-SE A LUZ"

E a fez-se a luz.


O homem, em sua arrogância, pressupõe que Deus deve ser uma entidade eterna, perfeita e suprema. Asimov, entretanto, subverte essa percepção ao colocar sua divindade como fruto de uma criação humana. Com essa visão, a subjetividade seria colocada em risco. Ora, se até Deus possui uma finalidade, a subjetividade nos moldes de Descartes seria utópica e irreal. Mas se considerarmos que a existência pressupões o pensamento e uma finalidade, deveríamos dizer que até máquinas seriam detentora de individualidade, e deveriam ser consideradas como tal. O que seria mais provável, porém: o homem, em sua arrogância, reconhecer sua inferioridade, ou ser humilde o suficiente para reconhecer subjetividade humana em seres artificiais?

Texto de Lucas Barreto Teixeira 

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