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Marinetti e Walter Benjamin - a memória popular e suas consequências

Desde então a literatura exaltou uma imobilidade pesarosa, êxtase e sono. Nós pretendemos exaltar a ação agressiva, uma insônia febril, o progresso do corredor, o salto mortal, o soco e tapa.

No dia 20 de fevereiro de 1909, no jornal francês Le Figaro, era publicado o manifesto futurista de Filippo Tommaso Marinetti. Com o manifesto, a vanguarda do futurismo foi inaugurada pelo poeta italiano. Idealizando a completa desvinculação com o passado, vangloriava os avanços das revoluções industriais que se expandiam em patamares extraordinários pela Europa, exaltando os feitos do homem ao ter criado a divindade das máquinas.

Marinetti (1876 - 1944), além de ter sido um relevante escritor do século XX, inaugurou uma das vanguardas modernistas européias.
Marinetti viveu uma época conflituosa e conturbada no início do século XX. Período marcado por guerras e crises econômicas e sociais, foi palco do surgimento de diversos intelectuais que almejavam romper com o passado, visto como responsável da era caótica, e criar algo novo. O italiano, dessa forma, ao escrever o manifesto futurista, buscou formas de estabelecer algo novo na sociedade européia. No entanto, diferente de muitos outros modernistas, Marinetti acreditava que era necessário o uso de força bruta para impor um período a ele idealizado.

Nós afirmamos que a magnificência do mundo foi enriquecida por uma nova beleza: a beleza da velocidade. Um carro de corrida cuja capota é adornada com grandes canos, como serpentes de respirações explosivas de um carro bravejante que parece correr na metralha é mais bonito do que a Vitória da Samotrácia.

As principais características do movimento futurista se baseiam na valorização das cidades, das máquinas e da tecnologia, em detrimento do antigo, velho e estagnado. Com um viés bastante revolucionário, via a beleza na fumaça fumegante de armas de fogo, nas sociedades industriais e nas novas construções brutas e imponentes. Contudo, para ser alcançado um estado em que predomine tais elementos, Marinetti era claro em seu discurso ao clamar por uma imposição vinda de cima para baixo a fim de que se suprima qualquer reminiscência do passado. Em suas palavras:

Exceto na luta, não há beleza. Nenhum trabalho sem um caráter agressivo pode ser uma obra de arte. Poesia deve ser concebida como um ataque violento em forças desconhecidas, para reduzir e serem prostradas perante o homem;

Nós destruiremos os museus, bibliotecas, academias de todo tipo, lutaremos contra o moralismo, feminismo, toda cobardice oportunista ou utilitária. 

No entanto, as ideias acabaram sendo usadas para o surgimento de organizações políticas totalitárias e repressoras. Por exemplo, Marinetti era amplamente admirado por Mussolini que, ao fundar o partido fascista italiano, incorporou grande parte de suas ideias. Além disso, alguns jornalistas, como Giuseppe Prezzolini, opinam que as ideias futuristas se aproximam muito aos ideias da revolução bolchevique, que valorizou o crescimento industrial e o trabalho bruto. Em todo caso, a ruptura com o passado e a história foram vistos por ambos movimentos. No caso dos movimentos fascistas, o ideal de criar de uma geração a partir de jovens, pautados em uma conduta militar, e em um sistema novo, o velho foi visto como fraco e insuficiente para sustentar as mudanças do início do século. Já na revolução Bolchevique, o antigo regime recebia a culpa da perdição da integridade do trabalhador russo, e a ruptura com ele significava um sistema avançado e íntegro.
O desapego à história, contudo, gera certos resultados catastróficos. Afinal, é preciso aprender com os erros do passado para podermos evitá-los no presente. Walter Benjamin, um dos filósofos da Escola de Frankfurt, em suas Teses sobre o conceito de história, escreve:

O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour — e esse dia é justamente o do juízo final.

Walter Benjamin (1892 - 1940)
Na perspectiva de Benjamin, a história não deve ser esquecida, e complementa ao dizer que sua compreensão e fundamental para ela não ser usada como instrumento político-ideológico. Ao seu ver, a história é muito mais ampla do que a progressão linear imposta pelos historiadores, sendo complexa no comportamento dos indivíduos da época e aglutinadora de pequenos acontecimentos, encontros triviais e conversas do cotidiano.
Todavia, como toda ação gera uma reação, muitos dos erros do passado geram repercussões no presente. Dessa forma, as gerações jovens, inconformadas por terem de pagar pelas falhas dos antecedentes, preferem esquecer a história para poderem viver a sua maneira. Então, líderes populares se aproveitam dessa contestação para poderem impor novas regras e novos regimes. No entanto, esses apenas se utilizam de contestações para poderem alcançar poder.
Por isso que Benjamin afirma que: somente para a humanidade redimida o passado é citável. Afinal, uma sociedade com pendências com o passado condena e não se permite aprender com ele.
Mas afinal, como podemos ao mesmo tempo conviver com o passado e com suas consequências?
Para podermos chegar a esse patamar, creio que nos falta maturidade. Ao mesmo tempo que civilizações se exaltam por causa de suas histórias, muitas permanecem no ostracismo por conta das mesmas. O ideal, basicamente, seria podermos conviver com os feitos e as trivialidades do passado ao mesmo tempo que evoluímos e criamos novas formas de pensar, de viver e de se organizar. Afinal, já que ao tentarmos nos esquecer da história, em um momento do passado, não chegamos em um lugar tão bom, seria bom começarmos a aprender com nossos erros para tentarmos tornar nosso futuro mais luxuoso do que previa Marinetti.

Texto de Lucas Barreto Teixeira 

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