O Escritor
Já era noite. O dia tinha passado rápido demais. Nada de
novo ocorrera na vida do homem.
Fumava na varanda de seu apartamento. Uma mulher o aguardava
na cama, dormindo, com seu pagamento na cabeceira e com as roupas largadas no
chão.
Uma coluna de fumaça cinza correu pelos seus lábios e voou
pelo horizonte escuro da cidade. As ruas, iluminadas pelos postes velhos e
enferrujados, estavam desertas. Nenhuma alma viva passava por ali.
Uma última tragada queimou superficialmente os dedos que
seguravam o cigarro. Deixou as cinzas caírem das alturas, sendo levadas pelo
vento bucólico da escuridão dilacerante. Sentia um imenso peso no peito.
Precisava molhar a garganta.
Levantou-se e deixou para trás a noite cálida de inverno. O
quarto era iluminado apenas pela fraca luz de um abajur em sua escrivaninha,
revelando a pele clara da mulher em sua cama. Passou por ela e alcançou a sala,
onde pilhas e pilhas de livros obstruíam a passagem. Deu o melhor de si para
alcançar o outro lado, mas ainda assim derrubou algumas. Na cozinha, modesta e
pequena, procurou por alguma garrafa com qualquer bebida dentro, em vão.
Suspirou pelo fracasso de sua busca. Iria comprar algum uísque lá fora.
Foi quando, de relance, viu seu reflexo no espelho da
entrada do cômodo, quebrado e sujo. Dos fragmentos do vidro, viu seu rosto
cansado e triste. O cabelo, desgrenhado e podre, saltava de sua cabeça, como um
monstro. Os dentes estavam amarelados e podres, sustentados por gengivas fracas
e avermelhadas. Uma barba começava a surgir em seu rosto, tão podre quanto o
cabelo.
E tinham os olhos.
Pálidos, cinza e cansados, envoltos por camadas arroxeadas
de cansaço e sofridão. Aqueles olhos, antes grandiosos e soberbos, agora viam
apenas uma criatura pouco mais importante que um animal apodrecendo no asfalto.
Um pouco menos viva que uma folha morta de outono.
Duas lágrimas despencaram daqueles olhos. E só.
O grande escritor Pedro Gonçalves, autor de obras como "Uma
flor de primavera" e "Eu quero estar junto a ti, e
outros amores", vencedor de diversos prêmios literários por seus
contos românticos e profundos, conhecido por sua imensa sensibilidade e
conhecimento cultural, pegou as chaves de seu carro para comprar uma garrafa de
uísque para acompanhar sua situação patética e despretensiosa.
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Quando ouviu a porta batendo, Verônica se levantou da cama
rapidamente. Vestiu-se, pegou o dinheiro na cabeceira e foi em direção da
saída. Não se importou em derrubar os livros na sala. Desejava apenas sair o
mais rápido possível de lá. O cheiro podre da casa a causava náuseas. O homem
gordo e podre a enojava. Tudo lhe causava grande repulsa.
No entanto, ao chegar na porta, notou algo. Via um brilho
entre os amontoados de livro. Voltou rapidamente e viu dois colares lindos de
diamante. Perguntou-se como aquele homem os conseguira. Pegou-os para si e saiu
do apartamento.
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Duas horas da manhã. O delegado Cavalcante preenchia as
fichas criminais dos presos durante a madrugada. Na maioria dos casos, eram
apenas jovens com drogas. Os ricos sairiam pela manhã, enquanto que os pobres
seriam realocados para centros de reabilitação, de onde sairiam com uma
mentalidade ainda mais criminosa. Estava cansado da segurança pública. Antes
poderia até protestar, mas agora já não fazia mais sentido.
Os únicos policias na delegacia com ele eram Sílvia e
Fernando. Cavalcante gostava da dupla. Eram bons agentes. Sabiam como
trabalhar.
As celas estavam lotadas com figuras miseráveis que pediam
ajuda médica ou comida. Alguns ali já estavam há mais de dois meses esperando
pela transferência a alguma prisão que não estivesse superlotada. Quando algum
prisioneiro morria, Cavalcante era quem precisava chamar o IML para arrastar o
indigente. Uma vez, um riquinho da Zona Sul morreu espancado alguns minutos
antes do pai, um juiz importante, chegar. Eles não tinham controle quando havia
alguma briga no cárcere por causa da barreira que se fazia ao redor da
confusão. Muitas das vezes, os policiais, e até o próprio Cavalcante, ignoravam
as confusões. Era bom para eles limpar a sujeira das celas. Só que, naquela
vez, o juiz tirou o couro do delegado. Cavalcante, a partir de então, passou a
trabalhar sobre ameaças e inseguranças.
Uma ligação. Sílvia prontamente atendeu. Qualquer coisa era
melhor que ficar na delegacia preenchendo papelada. Falou rapidamente e foi até
Cavalcante.
Foi ouvido um som de tiro aos arredores da zona norte.
Cavalcante checou o relógio. Ainda eram duas e quinze. Seu turno acabava em
quatro horas. Com sua intuição policial aguçada, supôs que, se tivesse ocorrido
um homicídio, a vítima era algo não muito melhor que um bêbado. Mas, realmente,
qualquer coisa era melhor que ficar na delegacia preenchendo papelada.
Cavalcante liberou Sílvia e Fernando para investigarem a origem do tiro.
Mal sabia o delegado o quão ocupados ficariam após a
ligação...
O Bebum
Sílvia e Fernando chegaram no local do crime quinze minutos
após a denúncia que receberam. Uma senhora gorda, com um vestido rosa e
espalhafatoso, esperava sentada na rua, segurando em seus braços flácidos um
adorável poodle. Os policiais saltaram da viatura e foram ter com a velha.
Fernando notou que a senhora tremia, de frio ou de medo.
Aproximou-se com um cobertor velho que fora esquecido na parte de trás do carro
e a cobriu.
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Dona Maria das Dores passeava todos os dias com seu
cachorrinho, Tite, por aquelas ruas. Apesar da noite ser perigosa, Dona das
Dores apenas passeava de madrugada, por não gostar de pessoas ao longo de seu
caminho. Era uma senhora reclusa e muito delicada, sem qualquer laço de
natureza humana com alguém a ponto de notarem sua falta.
No entanto, após terem passado por uma praça, a senhora
ouviu um estrondo e um grito. Desesperada, correu para se esconder. Entretanto,
não havendo nada ou nenhum lugar para ir, correu para o centro da praça, onde
pôde se ocultar dentro de um chafariz vazio e desfuncional. De lá, pegou o
telefone e ligou para a polícia. Apenas quando julgou ser extremamente seguro
sair do esconderijo, permitiu-se espreitar para fora do chafariz.
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A praça não estava muito longe de onde conversavam. A velha
estava apavorada e cansada. Sua casa era em algumas quadras longe dali, e agora
tinha medo de caminhar sozinha. Após preencherem todos os relatórios do
questionário, Sílvia e Fernando decidiram quem iria levar a velha para casa e
quem iria iria procurar pelas pistas do suposto crime, que até onde sabiam
poderia ter sido simplesmente uma falha no cano de descarga de algum carro, ou
algum adolescente idiota e bêbado que acha engraçado sair gritando em todos lugares
em onde anda.
Fernando jogou uma moeda para o alto enquanto escolheu um
dos lados. Restou a Sílvia Coroa. Deu Cara. A policial entrou com a senhora na
viatura e partiu, deixando Fernando sozinho na rua.
O homem tirou de sua farda um pacote de cigarros. Na caixa,
uma foto de uma família destruída pelo vício. Um homem - se é que ele ainda
pode ser considerado um - estirado na cama, agarrava com suas últimas forças a
mão da filha. O olhar de culpa e tristeza no rosto daquele ser penetravam na
alma de Fernando. Resolveu guardar o cigarro. Sofreria com a abstinência.
Caminhou até a praça, bem perto de onde estava. Via o
chafariz no qual a velha se referira anteriormente e tentou entender o panorama
geral daquele centro.
Era uma praça que conectava quatro ruas amplas e
arborizadas. No entanto, toda aquela região parecia estar completamente
deserta. Afinal, como nenhum morador teria ouvido o estrondo de um tiro?
Caminhou um pouco ao redor da praça, conhecendo superficialmente as ruas e as
casas. Procurava por um beco. Isso explicaria o mistério. O tiro poderia ter
sido abafado com algum material improvisado, e o grito poderia ter sido
igualmente abafado, de forma com que apenas a velha, muito próxima ao local do crime,
ouvisse o estampido. Mas como o criminosos, isso é, considerando realmente que
tenha havido um crime, poderia abafar um tiro? A região era cercada de
edifícios e casa. Achava difícil que ninguém mais tivesse escutado o estrondo
descrito pela testemunha...
Até que Fernando encontrou uma ruela, que levava até um beco
pequeno, sujo e estreito. Ouviu, então, um som vindo de uma lata de lixo, no
fundo do beco. Sacou a arma. Tremia pelo nervosismo e pela abstinência.
A lata se remexeu. Tinha alguém ali, com ele. Avançava
cautelosamente, calculando cada passo que fazia. Uma gota de suor escorreu pela
sua testa. Apontou a arma na direção da lata.
Fernando lembrou-se do treinamento. Tentava manter a mão
firme. Se estivesse com o cigarro, teria a oportunidade de dar um bom tiro. A
empunhadura da pistola lhe causava uma sensação estranha na palma da mão.
Sentia um formigamento na região. Olhos atentos, esbugalhados, tentando
absorver o máximo de informações do ambiente.
Então, um gato preto saltou da lata, derrubando-a, e correu
em direção da rua, vencendo a noite. Fernando suspirou, sentindo toda a tensão
correr pelo seu corpo. Deus, como estava desprotegido! A negligência poderia
ter lhe tirado a vida. Guardou sua arma e analisou o local.
O gato havia espalhado lixo por todos os lados, impedindo
uma boa visualização do local. Empurrou o lixo com o pé. Plásticos, documentos
queimados, notas fiscais... pensou em como as pessoas se desapegam facilmente
daquelas pequenas provas de sua existência. Então empurrou cacos de vidros de
uma garrafa quebrada. Molhou o sapato com o conteúdo dela espalhado pelo
asfalto. Xingou baixinho e trouxe o sapato para si, para analisar o estrago. No
entanto, notou nele manchas avermelhadas e viscosas. Era sangue. Pegou uma
lanterna da cintura e viu.
Dessa vez, xingou bem alto.
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Na delegacia, o telefone tocou. Cavalcante atendeu. Ouviu a
mensagem. Desligou.
Era realmente um homicídio. Aparentava ser apenas um bêbado,
como previra o delegado. Contudo, Sílvia afirmou reconhecer a feição da vítima.
Se estivesse certa, morrera Pedro Gonçalves, um escritor maldito e desgraçado,
que escrevia sobre sexo, drogas, álcool e assassinatos de prostitutas e
bêbados.
Cavalcante prontamente acionou a perícia. Preparou os
documentos e passou as horas que se seguiram preenchendo documentos e recebendo
ligações. O corpo foi examinado e transportado para os legistas, a zona do
crime delimitada e todos os procedimentos foram seguidos.
Após Cavalcante terminar de preencher todos os documentos,
já era próximo das seis horas. Anotou alguns bilhetes e memorandos para o
delegado que viria ocupar as próximas doze horas de carga horária e levantou-se
para esticar as costas. Esperou alguns minutos de pé, até a chegada do delegado
Ernesto. Trocaram algumas palavras e se despediram.
Agora, torcia para não ter que ser responsável pelo caso.
Estava farto de bêbados e indigentes.
Entrou em seu carro, parado no estacionamento da delegacia,
e deu partida no motor, enquanto via o sol dando vida à cidade. Não gostava
daquele movimento todo. Cavalcante sempre preferiu a clausura ao convívio
social. Pensou no relato dos agentes. Correu pela cidade até chegar a casa, um
pequeno apartamento no centro.
Estacionou, saiu do carro e entrou no edifício.
Infelizmente, trazia consigo o trabalho. Ficou pensando nas informações que
Sílvia e Fernando lhe passaram. Um maldito escritor. Excluído dos luxos da vida
comercial. Alcançou seu apartamento e abriu a porta. Pedro Gonçalves... valeria
a pena ler sobre o sujeito? Jogou-se na cama e dormiu como não dormia há meses.
Verônica
Verônica saiu do apartamento agarrando as jóias de diamante.
O corredor do edifício era escuro, estreito e emitia um odor desagradável. Sua
sombra era projetada na parede pela parca luz que vinha do apartamento de Pedro
Gonçalves.
A noite já havia começado estranha. Todos os dias, exibia
seu corpo na esquina da rua de um bar nobre, esperando um cliente rico e bêbado
o suficiente para lhe pagar bem e para não lhe dar muito trabalho. E na maioria
das vezes, tinha relativo sucesso. Faturava um bom dinheiro com sua carreira de
profissional da noite. Muitas das vezes, aliás, se via como a própria
personificação da penumbra, como se guardasse em si os segredos e os desejos do
crepúsculo.
No entanto, daquela vez, ao invés dos habituais carros de
esporte que a vinham buscá-la, um calhambeque, com a lataria caindo aos
pedaços, fora ao seu encontro. Era um homem grotesco, fedorento e rude.
Verônica tentara se afastar da visão nefasta que a perseguia, até que o homem a
alcançara. Conversaram rapidamente. Verônica dissera o quanto iria cobrar dele,
aproximadamente o dobro do costume. O homem apenas dera de ombros e mostrou uma
quantidade exorbitante de dinheiro.
Quatro horas depois, estava ali, segurando seu dinheiro,
dois colares de diamante e buscando uma saída do edifício. Encontrou então as
escadas no meio da penumbra.
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Acordou tarde, com a cabeça girando. O sol já estava se
pondo, e as ruas novamente se esvaziavam. Cavalcante sentiu o ar abafado da
tarde se espreitar pelas janelas de seu quarto. Sentia uma tremenda enxaqueca,
acompanhada de uma terrível dor no estômago. Devia ser fome. Checou o relógio.
Já eram quatro horas. O inverno encurtava os dias e acelerava a vida.
Levantou-se e foi à cozinha. Pegou duas latas de cerveja e
restos de uma pizza da semana anterior. Comeu calado na escuridão de casa.
Lembrava-se aos poucos dos ocorridos da madrugada. Pegou seu celular, que
anunciava treze ligações perdidas de Joana e cinco mensagens ameaçadoras de um
número desconhecido. Julgou se seria adequado ligar para a mulher. Droga,
realmente sentia falta de seu corpo. Mas precisava sair em, no máximo, trinta
minutos.
Acessou a internet e digitou Pedro Gonçalves.
Várias notícias e críticas apareceram na tela. Nenhuma sobre sua morte. Será
que literalmente ninguém se importava com o escritor?
Abriu o primeiro endereço. Era um de seus poemas românticos,
acompanhado de uma crítica sagaz e culta, embasada no conhecimento formal e em
uma vasta cultura. Enjoou rápido do texto.
O segundo endereço era uma crítica sobre um de seus últimos
romances, vinda do mesmo site que havia elogiado tanto seu discurso
melodramático. No entanto, dessa vez o autor era descrito como
"sórdido", "sujo" e "covarde".
Cavalcante decidiu abrir um de seus novos contos. Falava-se
sobre um bêbado cambaleando de um lado para outro por um bar sujo e escuro. A
cada passo do bebum, o proprietário ria com um dos serventes. Até que o bêbado
parou com sua andança e exclamou: "Onde é o banheiro?!", e o
proprietário, aos risos, apontou para uma porta de onde ele tinha acabado de
estar. O bebum então resmungou uma reclamação e mijou no meio do salão, para
descontentamento de ambos zombeteiros.
E acabava assim.
Cavalcante achou genial.
Quatro e quarenta e cinco. Resolveu ligar para Joana. Ela
não atendeu. Deu de ombros, leu mais um conto do morto, pegou suas coisas e foi
para a delegacia.
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O frio da noite a fazia tremer. Mesmo com o casaco que a
encobria, os ventos de inverno pareciam invadir cada íntimo de sua alma.
Sentia um peso em si. Não sabia exatamente o que era, como
se fosse um misto de culpa com preocupação. Mas apesar de tudo, não sabia por
que se sentia assim. Apenas sentia. E bastava.
Verônica puxou o capuz do casaco e deixou escapar ar quente
de se lábios lívidos e rebuscados. A rua não estava movimentada como de
costume. O peso se localizava no peito. Não achava que aguentaria tamanha
pressão. Puxou ainda mais o capuz e passou a caminhar em direção a um ponto de
táxi.
Chegou a passar por algumas de suas companheiras de ofício.
Mulheres da noite, vítimas da brutalidade da existência. Apenas Verônica
parecia sentir gosto na carreira. Sentia-se dona de si mesma. Não dependia do
sexo ou dos homens para viver. Era completa em si.
Então, a presença daqueles seres desgraçados deu espaço ao
vazio. Ao vazio completo das sombras e das luzes noturnas dos animais nefastos
urbanos. Poderia chegar um táxi na próxima esquina. No entanto, subitamente, um
indivíduo, ainda mais encoberto pelo crepúsculo e pela atmosfera cálida, surgiu
em sua direção.
Os dois caminhavam com passos calculados, respirando
soturnamente e carregando segredos. Verônica não reconheceu a feição do rosto,
desfigurado pela noite. Uma voz rouca chegou aos ouvidos da mulher. Uma voz
abafada, contida, animal.
As Joias...
Verônica arregalou os olhos, mas continuou andando. Alcançou
o ponto. Entrou em um táxi. Partiu.
Cavalcante
Cavalcante encontrou na delegacia um Ernesto velho e
cansado.
O delegado, que anteriormente havia o substituído, roncava
apoiado na mesa da sala. Cavalcante entrou e acordou gentilmente seu amigo.
Trocaram parcas palavras e se despediram.
Sentou-se na cadeira do escritório e verificou as
atualizações do dia. Denúncias de assalto, negligência policial, abusos
familiares... nada de novo no front. Resolveu ligar para Sílvia. Queria saber
sobre o caso de Gonçalves.
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Sílvia e Fernando passaram o dia investigando sobre a
vítima. Apesar de apenas suspeitar da identidade e não conseguir encontrar
ninguém que pudesse comprová-la, a digital do polegar direito bateu com a ficha
criminal de Pedro Gonçalves, preso algumas vezes durante a noite por ter
ameaçado alguém após ter exagerado na bebida.
A dupla separou as tarefas para cada um poder descansar
minimamente. Fernando acompanhou o processo jurídico e legista para
reconhecimento de corpo. As fotos encontradas na internet não pareciam bater
com aquele sujeito. Todas as fotos tiradas para reportagens e livros remetiam a
um Pedro Gonçalves de anos atrás, com olhar atraente e com um sorriso esbelto
no rosto. O que teria acontecido com ele?
Após a finalização de todo processo legal, Sílvia investigou
sobre o passado do homem. Procurou documentos, relatos, notícias e textos
acadêmicos para estabelecer alguma relação com seu assassinato. Enquanto
concluía o dossiê, recebeu a ligação de Cavalcante.
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Falaram-se rapidamente. Sílvia havia descoberto algumas
conexões interessantes entre a vida de Pedro Gonçalves e sua obra.
O escritor fizera sua fama com textos românticos e possuía
relativa fama com as mulheres no passado. Fora condecorado na Academia de
Letras e recebera diversos prêmios por suas obras, tendo algumas delas
traduzidas para até sete idiomas.
Cinco anos antes de sua morte, no entanto, ele sofrera um
terrível acidente. Dirigia de noite, influenciado por bebidas alcoólicas, com
uma jovem lhe fazendo companhia, quando colidiu contra um outro veículo. Por um
milagre, Gonçalves conseguiu se arrastar para fora do veículo antes de
explodir. A família da moça não teve nem um corpo para enterrar.
Depois do acidente, largou o academicismo para escrever
sobre o submundo das cidades, baseando-se em suas experiências com bebuns e
prostitutas.
Após a ligação, Cavalcante esperou um tempo no escuro da
sala para refletir sobre a vida desse homem. Depois, puxou uma pilha
interminável de documentos e começou a analisar os processos de seu turno. E
assim foram passando as horas, em papel por papel e papel...
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Joana acordou de madrugada com um som estranho na cozinha.
Rapidamente, cobriu-se com os lençóis que a protegiam do
frio da noite. A janela do quarto estava aberta. Esforçou-se, mas conseguiu se
lembrar que a fechara antes de se deitar. Quanto mais se acostumava com a
escuridão, conseguia ter uma noção melhor do ambiente. A janela não estava
aberta. Estava quebrada. Os cacos de vidro estavam espalhados pelo chão de seu
quarto.
Em um salto, acendeu a luz do abajur em cima da cabeceira da
cama. Tremia de medo e horror. Procurou seu celular, fez a ligação e foi se
esconder no armário.
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Os pensamentos oníricos do delegado se transformavam em
imagens voláteis em sua cabeça. Imaginava os bêbados e as prostitutas de
Gonçalves. Conseguia ver a explosão do carro. o acidente, o desespero, as
lágrimas. E, além de tudo, via o rodopiar do fogo. O fogo antes elegante que
destrutivo. Antes ardente que malicioso. Libertador em sua capacidade
mortífera.
Cavalcante recebeu a ligação de Joana sonolento e
dormitando. Os processos pareciam estar sugando sua alma. Entretanto, ao sentir
a insegurança em sua voz, o experiente delegado percebeu que se tratava de algo
sério.
Correu com seu carro até o apartamento da mulher, tentando
ao máximo reconfortá-la pelo celular. A tecnologia, contudo, não parecia
apaziguar em nada seu desespero. Acelerou ainda mais.
No edifício de Joana, não se precipitou em nada. Nunca
deixaria sua estrutura ser abalada por qualquer resquício sentimental. Seus
movimentos eram calculados por uma perspicácia fria e cruel.
Avançou pelos lances de escada com calma, a arma à frente do
corpo, braços estirados, costas sempre cobertas. Foi subindo: primeiro andar,
segundo andar, terceiro andar.
Checou o corredor. As luzes automáticas se acenderam. Vinha
vindo alguém. Escondeu-se na saída das escadas. Ouviu um som metálico,
identificando-o como a vinda de algum morador pelo elevador. Checou o relógio
de pulso. Uma e vinte e sete. A porta do elevado se abriu. Viu
passando uma mulher coberta por roupas de frio, com o semblante oculto pela sua
própria solidão. Andava trêmula. Pegou as chaves. Entrou em um apartamento.
Cavalcante continuou com passos curtos. A tensão se
dissipava em seu corpo, percorrendo cada um de seus músculos. A arma era pressionada
firme em suas mãos. Chegou na porta do apartamento de Joana. Sabia da chave
embaixo do carpete. Abaixou-se. Moveu o tapete de boas-vindas. Pegou a chave.
Abriu a porta.
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Verônica desabou em sua cama ao chegar à casa. Uma pressão
forte em seu peito lhe sufocava.
O apartamento estava infestado pela penumbra, apesar de ter
suas formas reconhecíveis. A mobília fina e nobre decorava cada canto dos
cômodos. Por um tempo, permaneceu deitada, sorvendo o ar frio que se espreitava
da cidade de becos e vagabundos. Pensava no ocorrido de algumas horas atrás.
Tentava reconstruir a feição do ser que havia lhe abordado. Quem poderia ter
sido?
Esticou seus braços em direção de uma bancada perto da cama
e pegou os colares de diamante. Como ele saberia disso?
Ficou balançando os pingentes, como uma brincadeira, uma
distração boba, infantil. Não notou as inscrições no centro deles. Dormiu pouco
tempo depois.
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Abriu a porta sorrateiramente. Permitiu deixar a luz do
corredor penetrar o e encher s sala principal. Com um rápido desviar de olhos,
notou um notebook ligado no centro da mesa no centro. E Cavalcante bem sabia
que Joana não gostava de deixar seus aparelhos eletrodomésticos ligados.
Avançou devagar contra a escuridão do apartamento,
procurando sempre espaços para se acobertar e ter sempre relativa vantagem em
um possível combate. Passou da sala para os cômodos conexos. Cozinha, banheiro,
quarto. Não teve pista de nenhuma presença ali. Cavalcante guardou a arma e
abriu o armário. Joana saiu saltando para os braços do delegado, em lágrimas e
com o medo em seu rosto.
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Cavalcante achou de bom grado passar a noite com Joana.
Ligou para Fernando e Sílvia e conseguiu se desvencilhar dos documentos daquele
turno.
A mulher dormia como um animal grotesco esparramada pela
cama. O homem, por outro lado, sentia-se disperso por conta da adrenalina. E
ainda tinha de descobrir quem fizera tudo aquilo a ela.
Checou seu celular. Viu as mensagens ameaçadoras que
recebera pela amanhã. Não notou nada de extraordinário.
Foi até a cozinha pegar uma bebida. Pegou uma lata de
cerveja, voltou para a sala, e sentou-se defronte ao notebook. Na tela, uma
mensagem inscrita.
Cavalcante virou todo o conteúdo da garrafa e sentiu a
náusea do álcool lhe consumir. Ouviu a voz de Joana lhe chamando. Foi até ela.
"Diga que me ama", dizia, e Cavalcante contentou-se em responder que
a amava.
Ao Fim da Noite
Sílvia tentava se desvencilhar do sono. Tinha papéis jogados
pela mesa com fotos, anotações e relatórios. As imagens saltavam em seu rosto e
se misturavam com as letras bruxuleantes. Sentia-se só. Tão só quanto as
personagens de Pedro Gonçalves, cujas histórias se desbotavam e caminhavam dos
papéis para a imaginação da policial. Tinha sua mente focada especialmente em
uma anedota peculiar.
Era sobre um cara normal, certinho e careta. Pai de família,
católico apostólico romano, com um bom emprego e bastante simpático. E, por
isso, era extremamente chato. Se sua imagem era tão santificada e protegida
pelas camadas superficiais de uma sociedade hipócrita e narcisista, na
realidade o homem sofria de uma angústia profunda em si. Não suportava a
rotina. O trabalho o sufocava de um lado, enquanto de outro sofria pelos
suplícios da mulher.
Até que, um dia, esse homem resolve fazer um caminho
diferente de volta a casa. A rotina diária foi rompida pela escolha de uma
curva diferente. Essa revelação o deixou entusiasmado. Não conseguia conter sua
euforia. A adrenalina corria pelo seu sangue como um ser consumindo seu
espírito. Infartou no trânsito. Fim.
Sílvia se levantou e pegou uma garrafa de uísque.
Compreendia a mensagem de Gonçalves. Mas às vezes, a liberdade cobra um preço
caro demais. Tomou a bebida pelo gargalo da garrafa. Sentiu sua garganta
queimar. Bebeu mais um gole. Guardou a garrafa.
Voltou a analisar os documentos, de pé dessa vez. Não
entendia como o acidente foi capaz de alterar tão profundamente o escritor.
Será que se sentia culpado pela morte de sua acompanhante?
Puxou a ficha da vítima daquela fatalidade. Christiane
Génessier. Filha de imigrantes franceses. Estudava Letras na época.
Possuía textos brilhantes, e chegara a ser chamada de "genial" por um
ou outro crítico que se permitiu conhecer sua obra poética.
Obteve acesso a uma de suas redes sociais. Descobriu que ela
e Gonçalves tiveram o primeiro contato em uma feira de livros. Dois meses
depois, aconteceu o acidente.
Resolveu ir se deitar. Ao fim da noite, poderia pensar em
alguma relação...
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O dia chegou irritantemente ensolarado. Cavalcante se
espreitou para fora dos braços de Joana e sentou-se na beirada da cama. Sentia
uma espécie de culpa em si. O ataque ocorrido durante a madrugada, de certa
forma, foi culpa sua.
Checou o relógio. Seis horas. Estaria saindo da delegacia
agora se estivesse trabalhando. Olhou para o lado e viu o rosto iluminado
daquela mulher meio repugnante e meio aprazível. Tolerava-a, no máximo. Não
sabia ao certo o que era o amor, essa palavra ao mesmo tempo tão perturbadora,
tão intransigente e tão temida.
Sabia que essa era a última vez que a veria. Não sabia ao
certo se sentia saudades. Achava que não. Afinal, aquela não foi a primeira e
nem seria última vez que faria isso.
Viu o celular. Lá estavam as mensagens. Sabia bem de quem
era, apesar do número oculto.
Aproximou-se da mulher, beijou-a na testa e partiu.
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Verônica esperava o elevador quando Cavalcante saiu do
apartamento. Ela vestia um vestido alegre e suntuoso, engrandecido por dois
grandes colares de diamante, nos quais Cavalcante prestou bastante atenção por
conta do destaque em seu decote. Além disso, tinha os cabelos soltos e lábios
vermelhos, como se convocasse o prazer afrodisíaco da noite para o dia. Ele,
por outro lado, vestia uma camisa social suja, calças furadas e tinha o cabelo
desgrenhado. O elevador chegou. Os dois entraram.
O silêncio na caixa metálica perturbava levemente os
presentes. Ao mesmo tempo que hesitavam a falar, nada tinham a dizer.
Geralmente, assim ocorre na maioria dos casos em que dois indivíduos
compartilham o espaço confinado de um elevador. E, nesse caso, ambos estavam
ansiosos para saírem de lá. Mas, ainda assim, o destino os juntava naquele
seleto instante, quando um poderia representar a salvação do outro. Entretanto,
a porta do elevador se abriu. Cavalcante deu a passagem para Verônica, com o
intuito de absorver uma última vez toda sua beleza corpórea e espiritual.
Permitiu-se ver novamente os colares, dessa vez apreciando seus contornos e os
destaques.
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Cavalcante chegou à casa, serviu-se de vinho barato e
sentou-se no sofá. A imagem da bela mulher do elevador o amaldiçoava. Era um
canalha, de fato. Nunca mais poderia ter um relacionamento. Pegou um documento
guardado em uma mesinha ao lado do sofá. Era um dossiê sobre o filho de seu
algoz nêmesis, responsável pela sua perdição. Dentro do documento, além de
fotos do corpo do menino assassinado na delegacia, encontravam-se também cartas
e cópias das mensagens eletrônicas de ameaças do juiz.
Cavalcante suspirou fundo. Já se passaram cinco anos desde
então. Ainda assim, tinha todas suas relações brutalmente encurtadas pelo temor
do capataz.
No fundo da gaveta onde guardava o dossiê, fotos de suas
antigas companheiras forravam aquele nefasto santuário. Pegou de sua carteira
uma impressão tosca do retrato de Joana. Beijou-a e guardou junto às outras.
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Sílvia acordou em sobressalto. Arfava com o terror do
pesadelo. Sentia o suor frio correndo pela sua face.
Absorveu a atmosfera cálida da noite. Inspirou o ar frio que
espreitava pela janela. Que horas eram? Pegou o celular, esquecido no chão da sala,
e viu no visor mais de dezoito ligações perdidas de Fernando. Já eram oito da
noite. Dormira tanto assim? Estava tão esgotada a esse ponto?
De Fernando, ouviu uma mensagem de áudio. O parceiro
descobrira algo importante. Parecia animado. Sílvia recolheu rapidamente seus
pertences, saiu do apartamento, desceu correndo as escadas e entrou em seu
carro.
Vestia a mesma roupa do dia anterior, na qual passara o dia
todo dormindo. Tentava afastar o mau pressentimento que sentira ao acordar. Um
frio estranho e exógeno corria em seu sangue. Mas não conseguia afastar a
imagem concebida do acidente de Gonçalves e Génessier. Via a coluna de fogo
dançando e consumindo tudo à frente, queimando a face da menina e sufocando-a
com a fumaça acre e negra da morte.
Rodou a cidade meio sem rumo. Ainda não estava raciocinando
direito. A delegacia estava próxima. Parou o carro e esfregou seus dedos
calejados em sua face cansada. Dirigiria com calma. Viu uma pessoa querendo
atravessar, coberta dos pés até a cabeça. Deu a passagem, não conseguindo parar
de visualizar por baixo daqueles vestes suntuosas o rosto deformado de
Christiane.
Partiu com o carro.
O vulto da noite, por sua vez, entrou em uma ruela e seguiu,
iluminado apenas pela solidão da noite. Gatos pretos o vigiavam de longe,
revirando latas de lixo e espreitando pelos caminhos dos astros distantes do
domo celeste.
Andou por algumas quadras até chegar ao prédio. O mesmo
prédio onde, na noite anterior, Cavalcante entrara apreensivo e temente à
morte. No entanto, o que o delegado não sabia é que aquela não tinha sido a
última vez em que iria ao recinto.
O vulto entrou pela escada de incêndio, na lateral do
prédio, com a entrada possibilitada apenas pelo ataque no apartamento de Joana.
Esgueirou-se para dentro do prédio com calma e em silêncio.
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Verônica chegou tarde e bêbada, com os colares em seu peito.
O brilho das jóias a excitava, de alguma forma. Não desejava estar com mais
ninguém se não com aqueles diamantes. Quando abriu a porta do elevador, ouviu
sua vizinha chorando. Não se importou com o ruído estridente da mulher. Não há
problema, afinal de contas, em chorar por perder alguém. O que ela não podia,
entretanto, é estender o luto para além do fim da noite. Pois é como já dizia
um velho sábio... ao fim da noite, apenas sexo, álcool e a luz do sol.
E basta!
Lembrou-se de seu último cliente, quem havia proferido
aquelas palavras, e sentiu um pouco de remorso pelo roubo dos colares. Olhou
para as jóias com aquele olhar compassivo e misericordioso dos bêbados, e
permitiu-se soltar lágrimas. Não há problema, afinal de contas, em chorar por
coisa alguma.
Abriu a porta, mal viu o vulto, e teve a vida arrancada pelo
peso da lâmina da faca do agressor.
Era o fim da noite, sem sexo, sem álcool, sem a luz do
sol...
O Escritor,o bêbado, a Prostituta e o delegado ao Fim Da
Noite
Pedro Gonçalves saltou do carro com o turbilhão de
pensamentos perturbando seu ser. O delírio dos astros dilacerantes o
assombravam naquela noite.
Há mais de duas horas saíra de seu apartamento, deixando
para trás suas mágoas, sua incerteza e a própria vida. Trazia consigo uma
garrafa de uísque barato. Saudou a noite e bebeu um gole.
Estava em uma praça, sentado na beirada de um chafariz
desativado. Gostava daquele lugar em especial. Fora lá onde tudo mudou.
Conseguia, inclusive, visualizar a labareda de fogo no asfalto, consumindo sua
alma e sua amada, Christiane.
Christiane.
O nome da mulher ainda fazia seus lábios formigarem. A
verdade é que nunca havia superado aquela perda, traduzindo seu desgosto nas
palavras sujas de textos despretensiosos e ofensivos, deformados na mente de um
bêbado fracassado.
Lembrou-se de seu primeiro conto naquela fase maldita.
Era sobre um poeta traído por um amigo, que possuía um caso
com a esposa do escritor. Era mais um monólogo em que o corno explica a
definição de um idiota, referindo-se ao próprio amigo em si. No final, o poeta
revela que assassinou a mulher. Arquétipos, o nome do conto.
Gonçalves se perguntou qual seria seu arquétipo. O de um
homem bêbado? O de um frustrado romântico? De uma vítima de uma vida marcada
pela fatalidade e pelo descaso?
Bebeu até acabar o uísque na garrafa. Não tinha uma resposta
satisfatória para aquela pergunta. Talvez fosse todos aqueles e nenhum deles ao
mesmo tempo. Era, e era apenas.
A noite avançava com seu manto crepuscular de ventos cálidos
e frios. Gatos de rua corriam, esgueirando-se nos becos e nas ruelas de uma
cidade esquecida pela luz. Sentia-se ligeiramente embriagado. As lembranças
daquele lugar o machucavam profundamente. Um desgosto profundo marcava sua
feição. Levantou-se e se encaminhou até um beco, onde poderia jogar a garrafa e
talvez se estirar para dormir. Desejava dormir até o fim da eternidade daquela
noite, como um bêbado, como um desgraçado, como um escritor.
Até que, em meio às suas divagações, um vulto se aproximou.
Ao se virar, encontrou uma figura encapuzada e medonha, com feições nefastas e
abraçada pela beleza noturna. Não sentiu Gonçalves, entretanto, asco ou medo
com a visão. Na verdade, sentiu lágrimas límpidas da alma limpando seu
rosto.
Foi a visão mais linda de sua vida.
Gonçalves se aproximou e abraçou a figura por um longo
tempo. Ambos choraram pelo tempo, pela vida, e pela inevitável morte. A figura,
então, atirou, com o estampido abafado pelos corpos juntos.
O escritor caiu nas latas de lixo com um sorriso no rosto e
com lágrimas nos olhos. Fazia muito tempo desde que não sentia isso.
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Cavalcante, Sílvia e Fernando viam a cena com uma espécie de
horror misturado à dúvida e enjoo.
O corpo de Verônica estava estirado na sala, com a parede
pintada de sangue. No chão, junto ao cadáver, uma faca reluzia ao brilho tênue
e fátuo da madrugada.
Do lado de fora, Joana esperava com o rosto marcado por
lágrimas escuras e com a feição assustada. Cavalcante estava lidando com muitas
coisas ao mesmo tempo. Primeiro, o assassinato de Pedro Gonçalves. Depois, teve
de lidar com as ameaças de um espírito vingativo e prometeu para si mesmo que
não veria mais a mulher a qual começava a nutrir qualquer resquício de
sentimento, para o bem dela. E, agora, tinha aquilo. Era demais.
O delegado saiu do recinto, saiu sem olhar nos olhos de
Joana e deixou a cena para trás com Sílvia e Fernando pensativos. A dupla havia
descoberto uma poderosa informação que poderia trazer uma mudança efetiva no
rumo das investigações. Contudo, o assassinato improvável a qual eram
submetidos os obrigou a mudar bruscamente de planos. Além de Pedro Gonçalves,
deveriam buscar o assassino daquela prostituta.
Sílvia buscava novas pistas, facilmente encontradas na sala.
O agressor não se deu nem o trabalho de esconder as evidências. Claramente
havia entrado pela saída de incêndio, esperado pela chegada da mulher,
matando-a logo em seguida. Uma trilha de sangue sugeria a saída do assassino
pelo mesmo caminho pelo qual voltou. Ficou acordado, por uma partida de
"cara e coroa", entre os policiais que Sílvia organizaria o
perímetro ao redor dos quarteirão enquanto que Fernando iria atrás daquela
trilha, que parecia encontrar seu fim em uma ruela perto dali. Eles tinham um
palpite, no mínimo estranho e sem sentido, de que o assassino teria seguido até
a praça onde foi morto Pedro Gonçalves, não muito longe dali. Não havia uma
razão exata para acharem isso, sendo essa ideia apenas uma intuição, talvez
originária de uma preguiça de espírito, ao tentar encontrar apenas uma solução
que resolvesse ambos os casos.
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O vulto caminhava soturno pelas ruas da cidade. O sobretudo
cinza que cobria seu rosto tinha a ponta molhada de sangue. No entanto, não era
feito apenas de sombras aquele vulto. Um brilho pálido e suave dava a ele um ar
simbólico de etéreo. Faltavam poucos metros para alcançar o destino. Por fim,
poderia encontrar a paz.
Chegou à praça. Sentiu uma certa ardência no rosto com a
lembrança do acidente.
Foi em uma noite quente de verão. Tinham bebido além da
conta. Amavam-se profundamente. Então, a distração veio, e Gonçalves não viu o
poste. Bateram. O carro explodiu. O fogo veio e queimou seu rosto. Seu amado
fugiu, com medo. A mulher ficou, angustiada, deixando para trás seus cordões de
diamante, que posteriormente seriam resgatados pelo sobrevivente. Christiane,
por outro lado, morreria para o mundo, mas ficaria presa à terra com sua última
promessa: consolidar a morte que lhe foi negada naquela noite.
Quando matou Gonçalves, esperava se matar em sequência. Mas
as jóias, presentes e lembranças da vida que já não a era. Mas, agora, estava
completa, com todos os obstáculos removidos.
Alcançou o beco. Permitiu sorver uma última vez o ar da
noite. Pegou a pistola oculta em sua cintura. Apontou para o rosto deformado.
Atirou.
Fernando ouviu apenas o tiro alto e estrondoso.
Sílvia continuava por sua busca sem sentido e sem mais
propósitos.
Cavalcante, por sua vez, pegou um cigarro e o acendeu. Viu as estrelas, ouviu a melódia celeste e cansou-se daquilo tudo.
Inspirou a fumaça. Soltou-a lentamente.
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