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Os Incríveis II - Análise crítica

Em dezembro de 2004, víamos pela primeira vez a família mais incrível nas telas do cinema. Abordando temas familiares e sociais com um viés crítico, a longa de Brad Bird apresentou ao mundo uma família de super-heróis imersos em uma perspectiva pessimista de invisibilidade social por conta da exclusão dos heróis proposta pelo Estado fictício do filme. Apesar de sua aparente densidade, marcada pela trilha sonora brilhante e fulminante de Michael Giacchino, entretanto, os alívios cômicos e as cenas de ação roubam o fôlego da platéia que, entusiasmada, aguardou 14 anos para uma continuação de uma das mais belas animações da Pixar. E, por fim, fomos recompensados pela espera.


ALERTA: SPOILERs A SEGUIR

"Os Incríveis II" começa como o anterior acaba. Ao saírem de uma competição de atletismo de Flecha, a família de heróis se depara com um vilão colossal que ameaça destruir o mundo da superfície. Apesar de ainda serem considerados ilegais pelo governo vigente, os protagonistas vestem seus trajes para lutar contra o mal, impedindo a destruição da prefeitura e de casualidades de vida. Entretanto, por terem medo do potencial destrutivo dos poderes dos vários heróis que vivem nas sombras, marginalizados pelo descaso da sociedade, o Estado decide encerrar o programa criado para proteger e assistir aos heróis.
No primeiro filme, essa estrangulação de capacidades foi o principal tema abordado durante a narrativa. Desde Flecha, que não pode praticar esportes por ter uma velocidade sobre-humana, até o Senhor Incrível, que passou a ter uma vida patética com um trabalho medíocre por ter que se passar por um cidadão normal, Bird passa uma mensagem marcada pelo conformismo e pela massificação da sociedade contemporânea, onde todos devem prezar pela banalização individual para poder se encaixar nos moldes sociais. O vilão, Síndrome, inclusive, defende essa ideia, ao dizer que quando todos forem "super", então ninguém mais o será. Ou seja, ao sufocar os méritos individuais, coletivizando-os, a sociedade se torna pacata, monótona e extremamente regrada e controlada, como "um relógio, em que todos devem fazer sua parte como engrenagens"...


Dessa forma, ao encerrarem com o programa de assistência aos heróis, a família "Pêra" entra em contato com o responsável pelo dono da maior empresa de comunicações do universo cinematográfico. Winston Deavor e sua irmã, Evelyn Deavor, tendo como falecido pai um verdadeiro fanático aos heróis durante a época de ouro, quando ainda era legal ser super-herói, propõem à Mulher-Elástica de representar uma importante personagem para reobter os direitos civis da classe a partir de ações heroicas combatendo o crime. 
A partir de então, a família sofre uma ruptura que brinca com conceitos de tradicionalismo familiar, patriarcado e machismo. O Sr. Incrível, acostumado a ser sempre o herói, vê-se na extremamente difícil tarefa de cuidar dos afazeres domésticos, além de cuidar de uma adolescente revoltada, uma criança com dificuldades em aritmética e de um bebê com uma miríade de super-poderes enquanto sua esposa combate o crime em uma cidade longe de casa. Essa dinâmica, que por si só já agrega várias críticas aos padrões sociais estabelecidos quanto ao papel de homens e mulheres em um relacionamento, não é, no entanto, o ponto alto da longa.
Na verdade, quem rouba a cena desse filme é a própria Mulher-Elástica. Com a missão de limpar a imagem suja do passado dos super-heróis, a heroína se depara com um vilão sagaz e inteligente que, utilizando-se de técnicas de hipnose, tem como objetivo frear o avanço da luta social dos marginalizados.


O Hipnotizador, antes de ter sua identidade secreta revelada, não passa de uma analogia à mídia americana. Afinal, com a proposta dos irmãos Deavor de lutar pela cidadania dos heróis a partir de uma mudança de perspectiva nas motivações dos protagonistas, a longa não passa de uma grande crítica ao processo de mercantilização de informações, quando essas passam a ser consideradas comodities, servindo de manipulação ideológica ao público. Nesse sentido, o vilão defende um ideal na verdade bastante nobre em relação a como devem ser tratadas informações e quanto à relação entre mídia e sociedade.
Como estabelecido no excelente monólogo do Hipnotizador enquanto a Mulher-Elástica se desloca pelas sombrias ruas de uma cidade dominada pelo medo midiático, os heróis servem apenas para nutrir um desejo infantil de sentir-se seguro e de poder projetar em um personagem fantástico os anseios patéticos que os homens guardam em sua tola insegurança. Vejamos o Sr. Incrível, por exemplo. Esse personagem, quando deve cuidar de situações que envolvem sensibilidade e incertezas, acovarda-se em seu antigo manto de super-herói, tentando assim provar-se melhor que sua mediocridade em outros assuntos.
No fundo, o Hipnotizador critica inclusive o público consumidor da própria longa, que imerso na realidade no mínimo confusa e incerta característica do século XXI, procura na família Pêra salvadores de seus cotidianos. Essa característica, entretanto, não é exclusiva à sociedade contemporânea. Desde o princípio da religião judaica, pregadora da vinda de um Messias para a todos salvar, passando pelo sebastianismo de Portugal, que até hoje aguarda o retorno do místico rei e herói, até os votos de cabresto originários na Velha República e existentes até hoje no contexto atual brasileiro, a espera de um Salvador divino guia o imaginário místico humano, sendo usado muitas vezes como ferramenta política, econômica e social.
Dessa forma, podemos por fim relacionar os dois filmes. Se no primeiro a sociedade não poderia ter um Messias, "Salvador", para manter uma boa estrutura social, no segundo a mídia pressupõe o contrário, defendendo a existência de heróis para manipular a grande massa, sendo possível assim apenas a existência de um corpo social regrado, doutrinado e preso pelas convenções da sociedade.

O filme acaba, por fim, com uma conclusão feliz e alegre, como é de se esperar de uma animação voltada ao público infantil, apesar de ter em si tanta carga dramática e crítica. Se tivesse de fazer alguma crítica ao excelente filme de Bird, destacaria apenas uma cena ou outra em que os poderes de Zezé foram usados como uma espécie de Deus Ex Machina, o que em nada estragam o filme, rendendo apenas gargalhadas triunfantes na sala de cinema. Mas apesar do final previsível, Os Incríveis II é uma longa tão primorosa, incluindo os detalhes esplêndidos da animação e a dublagem perfeita e hilária brasileira, que ninguém poderia colocar defeitos. Fechando a saga da família Pêra com um primor artístico tamanho, ressaltando temáticas sérias de representação na mídia e na cultura, além de abordar a perspectiva antropóloga a qual baseei todo meu texto, tem tudo para ser lembrado por muito tempo como um dos maiores filmes do gênero.  

Texto de Lucas Barreto Teixeira

Comentários

  1. Sua análise foi bem além da minha. Curitiba debater mais sobre o assunto ;-)

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