Após vinte dias, na clausura de seus pensamentos e de seu escritório, Franz Kafka terminava o que viria a ser sua mais famosa novela. Era novembro de 1912, e após as angústias de Gregor Samsa escritas pela caneta pesada do alemão, o autor escreveria para sua esposa:
"Minha pequena história está terminada"
e foi descansar após suas penúrias.
Ao se distanciar de seus papéis, Kafka deixava para trás uma história sobre o peso das responsabilidades familiares e sobre a crueldade de uma sociedade burocrática e artificial. Apesar de não ter tido sucesso com seus escritos quando vivo, o autor foi consagrado anos depois de sua morte, quando críticos e acadêmicos se debruçaram sobre suas ideias e suas reflexões metafísicas e subjetivas, encontrando nelas valores preciosos. Nascia assim, então, um dos maiores nomes da literatura mundial.
"A Metamorfose", sobretudo, trata-se de uma tradução da angústia da sociedade moderna. Gregor Samsa é nada mais que um homem vazio, cujas ambições foram sacrificadas pelo trabalho incessante, sustentado pela falsa certeza de que aquilo é necessário para a subsistência familiar. Nesse contexto, o jovem, já completamente digerido pela rotina burocrática, transforma-se em um terrível e grotesco inseto.
Nota-se contudo, a ironia utilizada com a analogia imagética no momento em que de humano Samsa passa a ser uma "coisa". A "coisificação" - ou "reificação" - reflete uma das preocupações vigentes da lógica capitalista vigente. Se, por um lado, o sistema nos obriga a trabalhar mecanicamente com a escusa de que produzimos algo positivo para o convívio social, por outro ele retira nossa subjetividade e suga as vontades e os desejos. Ou melhor, direciona-os para o consumo, voltando novamente ao mercado. Em outras palavras, apesar de justificativas previamente levantadas, a sociedade se revela como um eterno ciclo de geração de riqueza, consumo, e solidão - essa sendo vendida como sucesso profissional e até almejada pelos mais novos.
Em nível subjetivo, a metamorfose revela a reificação. Contudo, Kafka também analisa tal fenômeno em nível macrossocial. Tendo como analogia o núcleo familiar em sua volta - literalmente, ao analisarmos a organização espacial da casa -, Samsa sente o impacto da artificialidade das relações sociais. Uma vez que não agrega mais em si um valor econômico, o protagonista vira nada além que um maldito parasita, sugando a vitalidade e os recursos de seus familiares. Desse modo, a sociedade capitalista, como um todo, também sofreu sua metamorfose. Para Kafka, o modelo vigente elimina os menos aptos e se reajusta, assim como rapidamente a família consegue uma nova geração de renda - alugando quartos para hóspedes. Além do mais, essa empregabilidade dá à casa um sentido capitalista de produção, como se cada detalhe fosse infestado por esse sistema.
O que acho mais interessante em toda estrutura kafkiana, entretanto, está além de sua literatura. Kafka sentia uma imensa necessidade de escrever sobre si, pois ele se sentia como Samsa - imerso em um eterno processo de frivolidades e irrelevância. Mas por que sua literatura apresenta um sentido tão crítico ao sistema? Pessoalmente, gosto de pensar que Kafka sentia um gosto em trabalhar com as contradições de conceito com o real (humano - coisa; família - estorvo; casa - meio de produção). Talvez, Kafka apenas tente nos lembrar da construção desse sistema, que de "liberal" transformou-se em "cárcere". Afinal, a metamorfose sempre acontece.
Texto de Lucas Barreto Teixeira
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