Um elemento muito importante presente em grande número de obras literárias é a construção da personalidade individual a partir de acontecimentos passados, geralmente ocorridos durante a infância. Na cultura popular, existe inclusive um nicho no mercado especializado na expansão das histórias para apresentar um passado, geralmente traumático, quando as personagens definem as diretrizes de seu caráter. É o caso de, por exemplo, quando George Lucas decidiu contar sobre a infância de Anakin Skywalker. É curioso observar a continuação desta grande tendência literária, visível em grandes nomes da arte.
Sem dúvida, "Demian", de Herman Hesse, é um dos melhores exemplos para se entender a estrutura de um romance de formação. Narrada pelo jovem Sinclair, a trama se desenrola a partir das angústias vividas durante sua infância, com traumas desenvolvidos por um grande desprendimento da realidade ao redor e de seu sentimento de despertencimento de comunidade. No cenário desolador apresentado, Sinclair conhece Demian, um estudante isolado e tão deslocado quanto ele, ao mesmo tempo em que é capaz de impor qualquer coisa de si, tornando-se grande influenciador de Sinclair, que acaba se tornando facilmente influenciável e incapaz de definir personalidade própria sem se remeter aos traços do amigo. Hesse, dessa forma, traduziu os mesmos sentimentos pessimistas de autores da Geração Maldita, como Salinger e Bukowski, bem como os da grande parte dos vanguardistas. Mas vamos por parte.
Os romances de formação, da forma como conhecemos popularmente, tiveram início no século XIX, decorrente de um olhar científico nas relações pessoais. Com o determinismo, os autores passaram a estabelecer causas aos comportamentos de suas personagens, retratando o meio onde foram formadas, criando um vínculo entre a criação e a vida adulta. Tal perspectiva científica é a responsável pela elaboração de capítulos específicos em romances do período, como "O Crime do Padre Amaro", "Ateneu" e "Madame Bovary", em que se narra especificamente a infância e a juventude, destacando a criação familiar, a formação escolar e a relação com a comunidade.
Na virada do século, entretanto, em especial no período entre e pós guerra, os autores não estavam mais contentes com a situação geral da arte. Para os vanguardistas e os modernistas, fora a visão científica a responsável pelas tragédias da época. Tendo sido utilizada pelos nazistas para elevar uma suposta raça biologicamente superior, ela acabou por perder o sentido artístico, tornando-se mera ferramente política. Era, portanto, imperativo estabelecer uma nova perspectiva artística. Contudo, antes, era preciso se desvencilhar dos preceitos deterministas.
Apesar de serem diversas as formas de contestação do cientificismo no início do século XX, a mais orgânica delas foi a imensa produção de romances de formação. No entanto, para contestarem o que era produzido até então, os autores criaram personagens completamente desfuncionais, resultado de uma criação realizada pela ordem científica, com escolas opressoras, famílias violentas e crises resultantes do processo. Em "Misto-Quente", de Bukowski, Henry Chinasky relata sua infância traumática, desconstruindo os valores familiares, destruindo o ideal do sonho americano e estabelecendo suas origens como a fonte de suas desgraças. Em "O Apanhador no Campo de Centeio", de Salinger, novamente a escola e a família são descritas de uma forma pessimista. Dessa forma, as principais instituições construídas pela análise racional-burguesa do século XIX eram contestadas pela arte maldita.
Hesse, todavia, é capaz de ir além do desconforto social nas relações sociais dos escritores americanos. Sua análise se estende ao campo religioso e político, sendo disruptivo ao sugerir que os jovens são capazes de criar e pensar sem as ferramentas massificadas pelas escolas. Demian representa a esperança de poder efetivar sua personalidade antes do amadurecimento padrão da vida adulta, já que é capaz de interpretar passagens bíblicas de forma subjetiva, assim como consegue agir e pensar de forma independente do sistema a qual fora submetido. Isso até, efetivamente, ser reprimido por uma guerra que não o pertence, mas que acaba por torná-lo apenas mais um dentre a massa de soldados destinados à morte sistemática.
Todo o movimento dos romances de formação acabou por criar um conceito interessante de ser analisado. O despertencimento literário, ou seja, a incapacidade de determinado personagem de se encaixar na sociedade, traz uma importante questão a ser analisada. Afinal, para os realistas e naturalistas, os desfuncionais se comportavam de forma diferenciada por conta de uma falha qualquer em sua formação, o que os positivistas poderiam denominar de anomalia social. Tanto é assim que Hitler, como estratégia de denigrir a imagem dos inimigos do regime, criou o conceito da "arte degenerada", ou seja, a arte moderna que retratava marginalizados, condenados por não se adequarem ao sistema. Por outro lado, seus sucessores valorizaram a figura dos desajustados, reconhecendo nesses os sintomas da sociedade doente resultante das práticas passadas.
O despertencimento tornou-se, ao longo do tempo, uma valiosa ferramenta narrativa. Isso explica, por exemplo, o interesse de George Lucas de abordar, na primeira trilogia da saga Star Wars, a região mais desolada da galáxia, de onde saem os maiores heróis do cinema. De histórias de reis e semideuses na Grécia Antiga, fomos a histórias de pobres, bêbados e prostitutas. Vale, contudo, criticar a aparente glamorização da miséria presente nos ideais hoollywoodianos. Mas vale reservar um outro texto exclusivamente ao assunto.
Encerro, portanto, remetendo-me à icônica frase do romance de Hesse.
Queria apenas tentar viver aquilo que brotava espontaneamente de mim. Por que isso me era tão difícil?
A formação, idealmente, deveria ser feita de forma orgânica, natural e em seu próprio tempo. Como poderia, então, algo tão subjetivo quanto a personalidade e a mentalidade individual serem desenvolvidas em conjunto, seguindo formas de pensamento pré-estabelecidas em um sistema rígido e artificial? A juventude, assim, acaba se sujeitando a diversos abusos, reduzindo-se a um período repugnante e criando homens frágeis e sem vida. Sem pertencer a nada ou a ninguém, acabam se perdendo de si mesmos. Desprendem-se e definham na pateticidade de um sistema falido. Despertencem-se da própria capacidade subjetiva de viver.
Texto de Lucas Barreto Teixeira
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