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A Vida na República de Platão


O filósofo grego Platão é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores e mais importantes pensadores da antiguidade, e uma das maiores influências da história da filosofia. E é em sua obra República que o autor expressa a maior parte de seu pensamento, ilustrando sua concepção de realidade a partir da criação de um Estado utópico. Dessa forma, compara o funcionamento do Estado com o comportamento dos indivíduos.
Aqui desejo realizar algumas suposições caso o Estado fosse implementado, analisando com um olhar contemporâneo e mais amplo do que poderia ser realizado à época. Em outras palavras, vamos descrever como seria a vida dentro da República, enquanto analisamos a obra de Platão e entendemos um pouco mais de seu pensamento.

Parte I – A divisão social
No Estado descrito por Platão, existe uma estratificação social, dividindo os indivíduos em três classes, dependendo de seus interesses e suas aptidões, conforme a Alma se manifesta.
Assim sendo, existe a classe mais abrangente, a dos assalariados, que desempenham as funções mais básicas do estado, de forma com que ele possa ser sustentado, produzindo alimentos, produtos manufaturados e até arte, desde que esta siga uma série de parâmetros regulados pelos governantes, como o respeito às divindades, a valorização da coragem, entre outros.
Em segundo, os guardiões, responsáveis pela defesa do Estado. Criados por meio da educação musical e da ginástica, além do estudo das ciências matemáticas, seriam os mais nobres e honoráveis cidadãos. Acima deles, apenas os governantes, liderando os cidadãos por meio da filosofia.
Em todo caso, haveremos de investigar um a um desses indivíduos, realizando as suposições corretas para podermos imaginar como seria a vida nessa República.

Parte II – O Assalariado
Sócrates – aqui personagem responsável pela defesa de Platão – inicia seu estudo sobre o Estado a partir de sua criação. De acordo com ele, o início de qualquer organização social se dá por meio da troca de produtos provenientes dos trabalhos mais básicos, do campo, até os mais complexos, dos centros urbanos. Tendo isso em mente, também estabelece o seguinte: aquele que exerce uma função qualquer deveria exercer apenas aquela função, tornando-se especialista nela, deixando aos outros indivíduos realizar outras funções. Dessa forma, ninguém poderia realizar algo diferente do que aquilo que lhes é designado.
Imaginemos nossa primeira situação. Estamos em uma das festas organizadas pelo Estado, em homens e mulheres, ainda em idade fértil, são convidados a fim de procriarem entre si, a partir da relação de casais criada pelos governantes e anunciada como se fosse uma atribuição divina. Dessa festa, diversas mulheres saem grávidas e, nove meses depois, seus filhos são levados a uma repartição pública, onde são criados como iguais, tendo a mesma educação até se tornarem jovens. Agora, se consideram todos como irmãos, e seus pais são todos aqueles mais velhos, já que agora pertencem a uma família pública.
Toma-se um jovem que, após todo o período inicial de educação, vê-se deveras interessado pelas paixões, pelos instintos e sem muita inclinação aos afazeres mais brutos. Assim sendo, esse jovem será rapidamente encaminhado a um trabalho assalariado que a ele lhe convir. Dessa forma passará a vida, preso em sua incumbência delegada pelo Estado, tendo como único lazer aquele regulado pelos governantes, preso, pelo resto de sua vida, à ilusão que pertence a uma raça inferior.
A grande verdade é que a República mostra seu primeiro lado autoritário. Ao tirarem do indivíduo sua identidade, ele só irá se identificar com aquilo que o Estado a ele dizer. Sendo detentores da verdade, os governantes são capazes de alienar e manipular a sociedade como melhor lhes convir.

Parte III – Os Guardiões
Vamos acompanhar agora a trajetória de um outro jovem. Esse, ao contrário do primeiro, apresenta um verdadeiro desapego aos prazeres do corpo, tendo um desempenho excelente nas aulas de ginástica e interessado nos sentimentos mais profundos do ser. Ainda infanto, esse jovem já terá sido designado aos guardiões, tendo aprendido por observação como uma batalha ocorre, visto que participara de conflitos carregando suprimentos e assistindo os guerreiros mais velhos, seus pais. Nessas batalhas, viu o guerreiro mais corajoso ser recompensado com honras e amizades, enquanto que os covardes foram desprezados e amaldiçoados.
Ao crescer lado a lado de homens e mulheres, com a mesma competência e o mesmo vigor físico, é igualmente condicionado a acreditar que apenas aquilo que o estado diz é verdade, considerando-se ser algo muito além do que realmente é. Ao invés de um herói, é apenas um peão dos governantes, tão alienado que é capaz de dar a sua vida por uma ideia que o considera apenas como mais um dentre seu exército de pessoas sem personalidade.

Parte IV – Os Governantes
Por último, devemos agora imaginar alguém que consiga se destacar mais do que os demais; alguém completamente desvinculado do corpo, que busque a todo custo o conhecimento do inteligível. Esse indivíduo, diferente dos demais, terá uma educação ainda mais árdua, voltada à dialética e à filosofia, para aprender a pensar pelo bem comum e a convencer os outros com sua fala. Apenas após os cinquenta e cinco ele poderá, por fim, exercer uma função no cargo de governante.
Dessa forma, os governantes, sendo filósofos, utilizando-se do controle e da alienação, são capazes de colocar em prática aquilo que pensam, tornando-se autoritários, mesmo por uma causa nobre. Aliás, o que se percebe pelo discurso de Sócrates é que exatamente por ser por uma causa nobre que o Estado precisa ser autoritário, visto que a liberdade individual, de maneira prática, causa um verdadeiro caos político e social.
Ainda assim, não há como sustentar a tese de Platão nos dias de hoje. É certo que, uma vez tendo a liberdade retirada à força, os indivíduos vão desejar se rebelar, desconstruindo toda a utopia de Platão. Nesse sentido, o autoritarismo pregado pelo grego é a sua maior fraqueza. E a sede de liberdade a maior arma contra os governantes.


Texto de Lucas Barreto Teixeira

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