Pular para o conteúdo principal

A Arte no Despejo

O ano é 1955. Poderia ser 1960. Poderia ser 1950. A miséria é indiferente ao tempo. Ali está Carolina Maria de Jesus, mãe, trabalhadora, assídua leitora e sensível autora. Após árduo trabalho durante o dia escaldante, por fim pode sentar-se, alguns dias com comida para seus filhos, frequentemente não, e se permite realizar a atividade que mais lhe apraz - escrever.


Poder-se-ia dizer que Carolina de Jesus foi escrava da miséria, imposta a ela por uma realidade indiferente, ignorada por um Estado composto de hipócritas e egoístas. "Quarto de Despejo", sua primeira publicação, foi um sucesso estrondoso de críticas e vendas em um Brasil mesquinho, dividido entre elites impulsivas e teimosas. Tendo sido descoberta pelo jornalista Adélio Dantas, teve sua sensibilidade artística sufocada pelos apelos de uma juventude militante, descomprometida com o valor por trás da artista, utilizando-a como propaganda de um programa político.
Contudo, existe sim uma complexidade literária em Carolina, uma sutileza comum somente aos mestres da escrita, um projeto. A escrita crua, sem eufemismos e falsas pretensões, encontra poesia nos sonhos e esperanças lúdicos da autora-narradora, enquanto perpassa pelos horrores da fome, do descaso e da violência brutal afastada para as periferias. Carolina sabe que nenhuma pessoa deveria viver em um lugar tão podre a abismal quanto aquele em que ela é submetida. Portanto, encontra esperança em meio a sua educação infantil, aperfeiçoada pelas avançadas leituras que realizava por intermédio de jornais abandonados e livros rotos e antigos. Há um bem que ela pode passar a seus filhos: sua biblioteca, rica em conhecimentos acumulados ao longo de vidas.
Em momento algum Carolina se põe em uma posição inferior. Ela tem clareza o suficiente para saber exatamente do que ela é capaz, tendo consciência também que a miséria a qual estava submetida seria temporária, diferentemente de outros indivíduos que não tiveram acesso à educação. Lúcida, se impõe como líder, denunciando diversos abusos ocorridos em sua vizinhança, embora fosse odiada por grande parte da população, talvez por medo de seu gênio. Em todo caso, Carolina se apresenta como um nome literário, destacando-se do ordinário.
Tendo como base de fundo a miséria, explora a condição humana, sua natureza selvagem e cabalística, demonstrando como se manifesta o egoísmo macabro do homem, e explorando as diferentes faces que a violência pode assumir. Por meio de seus filhos, brinca com o imaginário infantil, em uma relação naturalista, desenhando uma época, tipos sociais e uma sociedade há muito decadente.
Ainda assim, Carolina foi esquecida, completamente abandonada, pela mesma classe que pareceu ter lhe acolhido com tanto esmero. Após escrever suas considerações sobre a artificialidade das metrópoles, destruindo por completo o idealismo das elites brasileiras, em "Casa de Alvenaria", perdeu subitamente sua fama. Tudo de Carolina ainda está lá: seu projeto literário, sua autoria e sua historicidade. Entretanto, o que pode se aprender com o episódio é que as elites não desejam escutar suas vidas serem destruídas, preferindo, ao invés disso, ouvis sobre as desgraças que recaem nas cabeças de terceiros. E o fim trágico da Arte encontrada no despejo é se ver de volta ao despejo, não apenas em um quarto, isolado e distante, mas em uma sociedade generalizada e podre.

Texto de Lucas Barreto Teixeira
  

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Episódio 01 - Análise de "Misto-Quente", de Charles Bukowski

Como complemento ao último post sobre os romances de formação, analisei a obra citada, "Misto-Quente", de Bukowski, e destaquei seus principais pontos. Texto de Lucas Barreto Teixeira

A hora da estrela - A epifania da morte

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré- história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.  Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré- pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor de dentes que perpassa esta histór...

O controle de massas pela ignorância

Há diferentes formas pelas quais um autor pode se expressar na literatura. O gênero fantástico, com suas incontáveis vertentes, estabelece uma realidade absurda, seja ela futurista ou mística, improvável ou verossímil, complexa ou simples, de modo com que um problema possa ser abordado de forma mais criativa, dinâmica e elucidativa. Nesse contexto, as distopias foram formadas a partir da percepção política e social de certos autores em relação ao seu tempo, em que governos tiranos cerceiam as liberdades individuais, questionar já não é mais permitido, a a vida se torna fútil e patética. Dentre a vastidão de obras que se apoiam nesse princípio, três clássicos da literatura não apenas definem o gênero como também estabelecem uma série de correlações entre eles, criando uma vasta e complexa crítica à sociedade de nossos tempos. Da esquerda para a direita, Aldous Huxley, Ray Bradbury e George Orwell, respectivamente autores de "Admirável Mundo Novo", Fahrenheit 451" e ...