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Game Of Thrones - Análise crítica

No último domingo, dia 19 de maio, o mundo viu o fim da série Game Of Thrones, baseada nos livros das Crônicas de Gelo e Fogo, de G. R. R. Martin. Com oito temporadas de sucesso mundial, não há dúvidas que a produção se destaca dentre as melhores, com uma produção de dar inveja a grandes bilheterias de Hollywood, efeitos visuais impressionantes, elenco e direção primorosos e uma história que encanta a todos. Entretanto, com o épico desfecho de toda a saga construída por esse tempo, muitas críticas surgem, especialmente ao roteiro que aparenta descuidos e com diversas decisões que não parecem agradar o público. Por outro lado, há quem defenda as mudanças inesperadas na história com o argumento final: "isto é Game Of Thrones" - fazendo alusão às inúmeras quebras de expectativas durante o enredo da saga. Agora, com o fim da série, podemos, afinal, dizer que o roteiro de fato apresenta tantas falhas em seu desfecho? Ou estaria Game Of Thrones imune de críticas por sua essência?


Talvez seja impossível falar de Game Of Thrones sem comparar com a obra original de Martin. Apesar de ter lançado apenas cinco livros (equivalente às cinco primeiras temporadas), do total de sete, até o final a série tenta se equiparar com a genialidade do autor. A capacidade de Martin está, acima de tudo, na construção de seus personagens, que crescem conforme o desenrolar da história, passando por arcos claros, concisos e coerentes com a mitologia apresentada em seu universo fantástico. O exemplo claro, e que define a essência da obra, é de Ned Stark, um homem honrado, apresentado como protagonista do primeiro livro, mas que após cumprir seu papel na narrativa, é assassinado, contra qualquer expectativa criada anteriormente. Afinal, como poderia o herói morrer no início da história?
Até o final da série, esse episódio parece ser uma justificativa para qualquer elemento surpreendente presente no enredo. Entretanto, sem o suporte dos livros, os roteiristas parecem confundir a surpresa com o incoerente.
Vejamos os fatos. A oitava temporada começa com a chegada de Daenerys, que almeja o Trono de Ferro e a liderança dos Sete Reinos, em Winterfell, para a Grande Guerra contra os mortos. Desde a primeira temporada, é dito que existe uma ameaça no extremo norte do continente, atrás da imensa Muralha que divide Westeros das terras selvagens. Ao longo de inúmeros episódios, e por meio do arco de Jon Snow, nos é apresentada a situação em que, eventualmente, os mortos travarão uma imensa batalha contra os vivos. Apesar de não ser claro, é estabelecido que o general desse exército, o Rei da Noite, tem um objetivo maior do que simplesmente massacrar a raça humana. Bran Stark, após perder a sensibilidade nas pernas, vive apenas para ser o Corvo dos Três Olhos, personagem central para entender as motivações desse grande mal. Com todas essas informações, trabalhadas de forma progressiva, e por meio do lema que inicia a história, "O Inverno está chegando", a conclusão da saga fora construída para resolver a problemática instaurada. E quando vemos a morte do Rei da Noite na primeira batalha que ele trava com os protagonistas, com uma solução fora de todo seu arco, a decepção é apenas consequência do roteiro preguiçoso.
Sim, Game Of Thrones é uma série imprevisível. Porém, isso não é uma justificativa válida para inserir elementos narrativos sem sentido, que não condizem com os arcos dos personagens e com a história em si. Arya Stark, personagem que acaba executando o grande vilão, fora treinada com um objetivo claro, e nunca teve nenhuma conexão com a história da Guerra contra os mortos. Assim, Arya foi reduzida a um Deus Ex Machina, surgindo como uma salvação divina para um problema insolúvel.
Eis a grande diferença entre o material baseado nos livros de Martin e nos independentes. Na quarta temporada, quando Jeofrey é envenenado, o personagem já havia cumprido seu papel na trama, e já havia se tornado obsoleto. Sua morte, além de finalizar o arco de sua loucura infantil, serve como recurso narrativo para a evolução de outros personagens. Aqui, a solução ridícula da maior problemática da série não presta nenhum favor aso arcos dos personagens, e ainda impossibilita a conclusão da história de outros. Para ser feita a justiça, a morte de Theon, Sor Jorah e da pequena Lyanna Mormont fizeram justiça a suas construções. No entanto, ignorando personagens centrais na trama da guerra, como Jon Snow e Sam, e sem sacrificar personagens obsoletos, como Jaime e Brienne (permanecendo vivos, acabaram vivenciando a destruição de suas personalidades: a redenção de Jaime, construída desde a terceira temporada, foi descartada; e ver o destino pífio e sem sentido de Brienne foi um verdadeiro pesar), o roteiro apenas descartou um problema para finalizar de forma mais rápida possível uma história que não parecia estar pronta para ser finalizada.
Tempo. Parece ser este o principal vilão dos roteiristas. Com apenas seis episódios em mãos, parece ser impraticável dar um fim justo à série. A transformação de Daenerys, no penúltimo episódio da temporada, exemplifica com exatidão como a falta de tempo parece ter arruinado a conclusão da saga. Desde o início, há uma construção belíssima da personagem, que passa por abusos sexuais, liberta escravos, conhece traições políticas, mas sobrevive a todas as provações, sempre com um fim claro em mente - tomar o seu lugar de direito. Entretanto, quando por fim invade a capital e vê o exército inimigo se rendendo, decide queimar tudo que vê pela frente.
Por mais que a loucura de sua família estivesse presente há tempos, não houve uma transição natural para Daenerys se tornar louca. Tirana, como foi estabelecida, poderia ter queimado Cersei Lannister, dando um final digno para a personagem, que foi reduzida a uma vilã maniqueísta, com todas suas características subtraídas para morrer de forma patética. Nada que foi apresentado durante a série justifica o genocídio de Daenerys. Sua loucura foi forçada, preguiçosa e sem sentido. O desenvolvimento foi abandonado, e o fim prevaleceu ante a jornada que define toda a história.
E com o episódio final, tais problemas ficam ainda mais claros. O destino da família Stark, bem como o dos integrantes do conselho do novo rei, até encerra de forma satisfatória as jornadas apresentadas. Ainda assim, as decisões parecem incoerentes, com perguntas desnecessárias sendo deixadas para trás, que com um pouco mais de tempo poderiam ter sido elucidadas.
Prolongo-me, mas com o intuito de esclarecer as causas de tamanha decadência narrativa da série. Existem muitos outros problemas que podem ser levantados com o final apresentado, que desapontou até mesmo o elenco, e o próprio Martin. Sem o desenvolvimento correto, nada faz sentido em uma narrativa. Não são as surpresas que definem a obra magnífica do autor - são os desenvolvimentos de cada personagem, detalhados e pensados minuciosamente. Ignorar a coerência dos personagens com o enredo é um desrespeito com a obra, e a causa de seus defeitos. Espera-se portanto que algum dia poder-se-á ver o mesmo fim com meios melhores.

Texto de Lucas Barreto Teixeira

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