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O Desprezo ao Ordinário

É comum encontrar na arte um teor escapista. Muitas das vezes, os indivíduos que estão consumindo uma história não estão interessados a pensar sobre a própria realidade, viajando para reinos fantásticos, além do monótono cotidiano. Por tal razão sentimos fascínio com heróis super-humanos, galáxias distantes e figuras pitorescas. Ainda assim, há no escapismo sempre um teor crítico a nossa própria realidade, retratado por metáforas e alegorias. Como lidar, contudo, com a decepcionante verdade após se deparar com tais fantásticas aventuras?


O primeiro ponto a ser dito é que não apenas pela fantasia é possível explorar o extraordinário. O autor nacional Raphael Montes demonstra, com seus livros, como é possível partir de situações do cotidiano para o impensável. O autor estabeleceu uma fórmula para seus romances policiais, criando personagens baseados em arquétipos sociais para, posteriormente, colocá-los em situações de suspense e terror, quando se transformam em algo a mais. Em "Dias Perfeitos", por exemplo, Téo aparece como um estudante de medicina introvertido, até encontrar Clarice, uma jovem sociável e rebelde. Ao despertar uma paixão doentia, sequestra a mulher na tentativa de conquistá-la. O que antes era uma rotina comum e sem graça, se desenrola em uma série de eventos trágicos, surpreendentes e incomuns.
Os personagens vistos como extraordinários em nosso cotidiano são retratados com certa frequência em outros romances policiais. Detetives com sentidos apurados, ladrões com super inteligência, jovens prodígios trabalhando com tecnologia. Ao tentar criar heróis em um mundo crível, os autores estabelecem ícones verossímeis para os indivíduos se inspirarem. A arte contemporânea, no entanto, trabalha com o conceito de desconstrução desses personagens, como uma forma de desconstruir os próprios arquétipos já existentes.
As sociedades elegem para si figuras históricas, a fim de estabelecer um ideal ideológico. Contudo, a partir do distanciamento histórico e do aprofundamento de pesquisas científicas, é fácil notar as diversas falhas de caráter nos supostos heróis. O que hoje pode ser considerado o pilar de nossa sociedade, amanhã pode ser um obstáculo a um ideal civilizatório qualquer. Esse sentimento é refletido nas artes com a criação de nunces cada vez mais profundas nos protagonistas. Personagens como a "Atômica", interpretada por Charlize Theron, podem ser ao mesmo tempo assassinas cruéis e heroínas, salvando o mundo enquanto matam dezenas.
Essa interpretação artística também é refletida em universos fantásticos. Quando comparamos Tolkien a G. R. R. Martin, percebe-se uma escalada da violência, da fragilidade humana e da hipocrisia. Ainda assim, a fantasia por trás dessas narrativas encanta os leitores, que cada vez mais se desencantam pela própria realidade, caindo em um cinismo arrastado e degradante. Ao desprezar o ordinário, resta ao indivíduo se agarrar aos mundos fantásticos e irreais ou se desencantar com tudo ao seu redor. Em qualquer situação que seja, parece incômodo pensar que é em uma realidade monótona e patética que nossas vidas se desenrolam. O ordinário, no final das contas, é deprimente.


Texto de Lucas Barreto Teixeira

Comentários

  1. O desencanto pela realidade talvez ocorra pelo distanciamento da juventude, tão cheia de energia e vida. Contudo se soubermos usar a sabedoria que vem do amadurecimento, pode ser que boas trocas ocorram e que a vida não se apresente ordinária, mas cheias de mistérios na complexidade das relações vivenciadas. Agora, que a fantasia de uma boa estória contada nos proporciona tamanha diversão e prazer, isto não resta dúvidas. Parabens e obrigada por mais uma deliciosa postagem.

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