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Criação e Desconstrução - Uma Leitura de Mad Men

Cinco anos após seu término, ainda há muito a se falar sobre "Mad Men". Com suas sete gloriosas temporadas, a série alcançou, com muito mérito, a sua posição dentre as maiores séries de todos os tempos. Protagonizado por Don Draper (Jon Hamm), passa-se em uma agência de publicidade entre os anos 1960 e 1970, perpassando pela história enquanto os diferentes personagens da trama vivem em uma espiral de crise artística, social, midiática, política.


Para descrever Mad Men em linhas gerais escolho me apegar às premissas já apresentadas no piloto do seriado. Don é o arquétipo do homem tradicional norte-americano constituído pelo senso comum. Pai de duas crianças, mora com a esposa no subúrbio de Nova Iorque, onde trabalha na empresa de publicidade "Sterling Cooper". Sendo um dos mais brilhantes diretores de criação do mercado, é admirado e invejado, por sua carreira brilhante e vida perfeita.

It's Toasty
Don está sentado em um bar, onde seu alcoolismo insaciável e seu vício por cigarros são tratados com o maior glamour possível. No momento, rabisca algumas anotações em um guardanapo. Um garçom, negro, completo desconhecido de Don, pergunta se ele estava servido. "Pode me dar um pouco do fogo?" Acende um cigarro. "Você gosta de Old Gold?", referindo-se à marca do cigarro. "Eu sou Lucky Strike. Posso te perguntar por que você fuma Old Gold?" É quando um outro garçom, branco, aparece, e pergunta se o outro estava sendo inconveniente. Após dispensá-lo, o garçom apenas replica: "Era o que davam no Exército."
Draper: gênio criativo? Homem tradicional? Don Juan?
De uma coisa Don sabe, e carrega consigo tal ciência. Tudo seu é uma farsa. Uma identidade roubada. Uma vida criada da morte e da guerra. O homem que responde pelo nome de Don Draper é simplesmente Dick Withman, um fazendeiro rude, bastardo, nascido do ventre de uma prostituta. Foragido de uma guerra entre o que é e seu desejo de ser.
É como a Lucky Strike. As denúncias de departamentos de saúde subiam. Crescia a dúvida na sociedade. Seriam aqueles benditos cigarros de fato as causas de tantas mazelas? Ou seria apenas... tostado?
E eis que surge Don Draper. Não importa o que ele de fato seja. Importa o que ele quer se fazer ser.

A Secretária
Peggy Olson (Elizabeth Moss) é trazida por Julie Holloway (Christina Hendricks) até sua mesa. É seu primeiro dia na Sterling Cooper, como secretária de Draper. É o início de sua grande carreira.
A primeira grande ideia de Peggy vem em uma rotineira pesquisa de opinião entre as secretárias. Uma marca de cosméticos disponibilizara uma imensa variedade de batons aos publicitários, que resolvem testar a receptividade do produto com as mulheres que trabalham na empresa. No meio de uma série de comentários misóginos por parte de tais homens, eis que Peggy, em uma imensa inocência e simplicidade, expressa o que se tornaria a marca dos produtos.
Há vários motivos pelos quais pode-se entender as qualificações e os méritos de Peggy. Contudo, é interessante de se estabelecer o elo entre Don Draper e sua secretária. Não, a capacidade de Peggy não depende de Don. O que ocorre são as semelhanças entre suas trajetórias. Afinal, Peggy é uma mulher, na década de 1960, que se arrisca em um mercado predominado por homens. No entanto, como ela mesmo diz:

Se a conversa não lhe agrada, mude o assunto.

Assim como Don, ela busca romper os paradigmas estabelecidos para ela. Isso já não mais lhe basta. Ela precisa estabelecer seus próprios.

A Criação Artística
O que é publicidade?
O questionamento por diversas vezes é trazido pelos personagens da série. Por vezes, responde-se com certo cinismo, pessimista em relação à arte em si. Sim, é possível entender Mad Men como uma alegoria da crise das artes, assunto amplamente divulgado à época em que se passam os eventos da trama. Em princípio, os exemplos de publicidade são supérfluos, vendendo conceitos vazios a vidas artificiais. É a venda de um propósito, de uma felicidade de fácil acesso. Isso até a campanha para a Kodak.
Como já fora dito, Don mora com sua esposa e dois filhos no subúrbio. Pai e marido ausente, parece manter a imagem de sua família apenas para fins práticos, de imagem. São raros os momentos de genuíno afeto de Don com seus filhos, e os que ocorrem parecem ser  muito mais uma tentativa de reconstruir a própria infância, em um delírio lúdico, que de fato um ato amoroso em relação aos filhos.
Entretanto, ao elaborar uma campanha para um projetor de slides para a marca, resgata diversas fotos de sua família, em diversos momentos de uma aparente felicidade. Ao projetar as fotos, resgata as memórias do que poderia ser felicidade. Esse conceito lhe parece estranho. Como se não lhe coubesse tamanho prestígio.
A partir de então, vendendo o que mais de íntimo há em si, sua arte parece se corromper. E até o fim de sua jornada, a arte está em genuína crise.
Ainda assim, o trabalho deve ser feito. A demanda incessante por produção não está interessada na arte. E Don sabe disso. Em um embate duro entre duas partes, deve escolher entre o prestígio econômico e a auto realização. Quando ignora sua fome pela arte, sua vida passa por uma grande decadência, acompanhada da vertigem da sociedade norte-americana, cansada e frustrada. Até o fim, não consegue se decidir entre o luxo e a ânsia artística, enquanto acompanha o crescimento de Peggy, o arquétipo de uma artista nata, talentosa e respeitada, apesar de ter de realizar diversos sacrifícios sociais poder viver de sua arte. Viver por viver ou viver pela arte? Cada um deve se realizar essa pergunta, não importa quantas vezes, desde que consiga viver arcando com as consequências de tal escolha.

Texto de Lucas Barreto Teixeira


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