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Três leituras estéticas de Pokémon




A CRIAÇÃO ENQUANTO IDEAL REPRESENTATIVO DA LINGUAGEM
 PRIMEIRA LEITURA ESTÉTICA DE POKÉMON

No início, nada. Um vazio cósmico, inexistente, eterno e pleno em si. Então, faz-se existir. A gênese do universo, ou da realidade como nós a entendemos, é um mistério há muito formulado por nossa vã filosofia. Em termos teológicos, o berço do existir é uma relação íntima com o surgimento da vida racional. Mitologicamente, as divindades se originam por conta da necessidade humana de se sentir representada em algo além de sua compreensão. Apenas com Descartes, após a tradição aristotélica de correspondência metafísica, Deus se torna o Logos universal, a origem e a causa da razão. O propósito humano passa de uma subserviência tosca e covarde perante o absoluto e evoca um ideal de razão. Existe-se porque se pensa, e pensa-se por existir.
No universo fictício vasto de Pokémon, criação de Satoshi Tajira, tangencia a problemática filosófica pela representação de Arceus, uma lendária criatura que teria originado toda a realidade. Do vasto e opressor vazio, nasce Arceus e, com ele, tudo se forma. Antes, traz à vida Dialga e Palkia que, respectivamente, criam tempo e espaço. A partir do ponto inicial da existência, surge uma corrente de eventos que origina a noção temporal e, por entropia, pela expansão da imensa massa de energia da criação, a noção de distância é inaugurada. Além dos dois guardiões do tempo-espaço, Arceus dá a vida a Giratina, responsável pela antimatéria. Em termos lógicos, se a preposição A é verdadeira, não-A é falso. Dessa forma, existir implica no não existir, e o que é pode ser definido por tudo aquilo que não o é.
A alegoria, de imediato, revela um olhar cientificista em relação à gênese do universo. Ainda, quando consideramos que a partir desse evento Arceus delega vida a outras criaturas com o intuito de proliferar sua criação com razão, o autor parece ter uma visão teleológica da criação, ou seja, as coisas existem por visarem um fim. No entanto, a própria concepção da criatura lendária agrega um valor representativo semântico interessante. Primeiro, investiguemos a descrição feita pelo próprio autor de seu Deus.
“It is described in mythology as the Pokémon that shaped the universe with its 1,000 arms. It is told in mythology that this Pokémon was born before the universe even existed. It is said to have emerged from an egg in a place where there was nothing, then shaped the world.”  
Arceus teria “moldado o universo com seus 1000 braços”. O que seriam os braços de tal criatura? Ao longo dos jogos da franquia, conhecemos pequenos Pokémons em formatos específicos, chamados unown’s, que formam, individualmente, símbolos semânticos, ou letras. Quando pensamos no alfabeto, reconhecemos símbolos fonéticos finitos. A partir desses parcos caracteres, formamos um número exponencial de outros símbolos, as palavras que, quando organizadas em formas específicas, criam sentenças. De um número finito e parco de signos, conseguimos representar o universo. Eis a beleza semântica. Eis, também, os mil braços de Arceus.
O que entendemos por aquilo que existe não passa de uma representação simbólica da realidade. A criação, portanto, é a partir da própria representação. Deus não passa de uma ideia construída a partir de caracteres finitos, e alcançar qualquer noção de infinito parece remoto para a racionalidade parca que a nos foi entregue. Os próprios conceitos dimensionais são apenas representações de nossos sentidos. Logo, é interessante notar como a gênese de cada Pokémon é vinculada com algum ideal representativo, visto que a ideia deles é originada pela semântica. Nesse sentido, conhecer a causa de nossa existência é tão relevante quanto observar as ondas do mar: tudo é mero representativo.

A CRISE DO IDEALISMO PLATÔNICO
SEGUNDA LEITURA ESTÉTICA DE POKÉMON
A elaboração de tratados políticos visa um ideal de sociedade. Muitos foram os autores que buscaram entender como um Estado deveria funcionar de modo que os indivíduos pudessem viver de forma mais proveitosa. Nesse sentido, “A República”, de Platão, foi uma tentativa de vincular ao Estado e aos governantes a virtude, de modo com que a sociedade pudesse, como um todo, tornar-se virtuosa em si. Seu tratado, contudo, é recheado de um idealismo ingênuo, talvez, por visar a teoria sem o teor pragmático dos governos. De acordo, apenas com Hobbes e Maquiavel veríamos os primeiros tratados políticos realistas, que trabalhassem com uma visão menos idealista, beirando, certamente, o pessimismo político.
Ora, não haveria como existir um Estado idealista? Ou a política teria sempre que tanger os abusos sociais? Nesse sentido, Pokémon, obra fictícia de Satoshi Tajira, apresenta uma interpretação lúdica da questão. Na geração de Unova, dois Pokémons lendários se enfrentam em um embate incessante, Reshiram e Zekrom. O primeiro é a representação pura da verdade, e seu eterno guardião, enquanto que o outro defende os ideais. Inicialmente, os dois eram apenas um, unindo a verdade, o pragmatismo, do idealismo. Entretanto, em um confronto de famílias reais, o lendário Pokémon foi dividido, deixando, também, um terceiro, Kyurem, uma casca do antigo.
Em uma análise rápida, sem perder o foco da discussão, quando os três eram um, eles representavam um platonismo coerente, sendo capaz de juntar a prática com o idealismo. Ao longo de seu tratado político, é possível observar que Platão sustentava a ideia da possibilidade de suas ideias, tentando moldar algo coerente com sua época. No entanto, a cisão do platonismo dividiu a prática, o possível, do ideal, aquilo que se deseja ser. “Utopia” apresenta essa dupla implicação, de algo ideal e algo que não pode ser. Ainda assim, é inserido na narrativa que Kyurem seria capaz de absorver uma de suas partes, para resgatar o poder antigo dos plantonistas. Entretanto, a forma original nunca pode ser refeita.
Existe um equilíbrio tênue de forças entre o idealismo e a prática. Já que ambos não podem mais se unir, o máximo que pode ser feito é balancear as partes, nunca deixando uma se sobrepor à outra. Afinal, quando Kyurem absorve uma das partes, o poder de um se torna imensamente superior, deixando a discussão frágil. Um Estado com muitos ideais e pouca prática é fadado ao fracasso tanto quanto aquele que visa a prática mecânica, sem propósitos. Sendo assim, a crise do idealismo platônico encontra sua solução em sua causa, no balanceamento justo e regular de idealismo com pragmatismo.

O SER SINTÉTICO E O AUTÔMATO DE SPINOZA
TERCEIRA LEITURA ESTÉTICA DE POKÉMON
Vivemos na era da automatização. Com cada vez mais máquinas substituindo a força braçal do homem, exercendo trabalhos mecânicos, severas questões sociais se resultam a partir do processo. Por mais que tudo aponte para o fato de que os humanos não correm o risco de perder trabalhos em campos acadêmicos e de teor intelectual, certos indícios podem resultar em um futuro pessimista em relação a esse quesito. Afinal, a sofisticação tecnológica chegou a certo nível onde o homem já não é mais capaz de derrotar a máquina em jogos de estratégia, como xadrez. É natural perguntar se algum dia as máquinas possam substituir os homens em todos os campos, de forma mais ampla possível.
Spinoza já se questionava quanto ao assunto. Em meados do século XVII, o filósofo comparava as pessoas que passavam pela sua janela com as estranhas novas máquinas que surgiam, arcaicas e simples, que já faziam certas funções antes únicas aos homens. A partir desse princípio, perguntava-se o que poderia garantir-lhe que tais indivíduos não seriam autômatos, seres sintéticos, artificiais.
No primeiro título da franquia de obras reunidas pelo nome de Pokémon, deparamo-nos com a existência de Mewtwo, criatura criada artificialmente a partir de resquícios do lendário Pokémon Mew. Pela história do jogo, Mew seria a criatura responsável por dar vida aos primeiros Pokémons, sendo uma espécie de divindade deste universo, obedecendo às ordens de Arceus, seu criador. Dessa forma, Mewtwo é a tentativa do homem de recriar o próprio Deus, tornando-se, assim, uma espécie de Deus, consequentemente. Eis o grande dilema de tentar-se criar vida, da mesma forma como Deus teria feito inicialmente. Ao conseguir tal poder, o homem poderia ser absoluto.
Mary Shelley, em “Frankenstein”, entende que tal poder resultaria em uma tragédia, ao menos para o criador. Uma vez criado, o ser voltar-se-ia contra o criador, buscando a morte de Deus. Mewtwo não escapa desse fatalismo. Uma vez criado, o Pokémon é constituído com grandes poderes psíquicos, resultando em uma consciência vasta e reflexiva. Na longa “Pokémon 2000”, Ash Ketchum e outros treinadores Pokémons são convidados a uma ilha por Mewtwo, que observa suas relações com seus companheiros de batalha. Ao entender que as criaturas eram usadas como ferramentas pelos humanos, Mewtwo estabelece uma justificativa racional para matar seu Deus.
Entretanto, todo ser racional tende, naturalmente, para esta conclusão. Matar Deus é vingar-se de existir. Se Kierkegaard, Camus, Schopenhauer estiverem certos, a vida é um absurdo trágico. E a razão, cujo propósito último seria ratificar tal afirmativa, é uma tortura a qualquer ser existencial. Em suma, matar Deus é vingar-se, e vingar-se de Deus é o fim último da razão.

Textos de Lucas Barreto Teixeira

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