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The Boys e a sociedade de consumo

Em uma época em que super-heróis estão na moda, e o imaginário da cultura pop especula sobre as gerações que ainda hão de vir para prestigiar o gênero, "The Boys" aparece como uma grata surpresa em contraponto a diversos alicerces estabelecidos em relação à estética proposta. Já em sua primeira temporada, levanta questionamentos pertinentes não apenas ao gênero quanto também ao mercado desses heróis, realizando uma leitura cínica e crua da política e da sociedade que consome esse produto em exaustão. Afinal, a obra propõe que nada é sagrado quando tudo é consumo.


Baseada nos quadrinhos de Garth Ennis e Darick Robertson, a série retrata uma sociedade distópica em que uma grande corporação explora direitos de imagens de super-heróis, vinculando propaganda e vendendo ideologias e discursos políticos, enquanto os indivíduos inseridos em tal sociedade idolatram aqueles que passam a ser considerados "deuses" aos olhos dos mortais. Satirizando a atual predisposição do mercado cinematográfico do gênero contemporâneo, a obra em diversos momentos realiza paralelismos com a realidade, não sem criar uma história própria, com personagens originais e que correspondem com as situações adversas que movem a trama.
Já na primeira cena, o espectador é convidado a conhecer tal mundo fantástico, enquanto acompanha a discussão inocente de duas crianças interessadas em uma conversa despretensiosa acerca das habilidades especiais de heróis que compõem o grupo dos mais notáveis dentre os super seres. Nesse instante, a dupla de heróis mais fortes aparece para salvar o dia, além de prestigiar os presentes com uma sessão de fotografias e autógrafos. Contudo, logo em seguida, ao acompanharmos o passeio de Hughie, um jovem ordinário e introvertido, presenciamos o assassinato de sua namorada por parte de um herói com extrema velocidade, realizando a primeira grande quebra de expectativa na narrativa.
A grande sagacidade da história de "The Boys" é exatamente romper com o que fora estabelecido até então no gênero, certos princípios que podem ser considerados sagrados aos mais entusiastas, criando algo novo a partir de então. Os Sete que deveriam compor a galeria dos mais puros e verdadeiros heróis não passam de figuras criadas pelo marketing da empresa, com base no interesse dos fãs. Se um membro do grupo segue determinado credo, ou se é de determinada etnia, sexualidade, segue uma ideologia política ou moral - nada importa, conquanto que siga os parâmetros do público, que cada vez mais é envolvido por um mercado que sempre entregará aquilo que é demandado, sem mais surpresas para a sociedade de consumo. Ora, mas este é o princípio básico do mercado: se há demanda, há oferta. Então, o que há de errado com a lógica da grande corporação que monopoliza esse nicho?


De fato, existem alguns momentos decisivos para se compreender o objetivo da série. A cada vez que vemos os rompantes do Capitão Pátria, que carrega a bandeira de seu país nas costas apenas para sentir-se tão superior aos outros a ponto de tornar-se um super-homem niilista, sem apego moral ou ético, buscando apenas poder enquanto encanta a multidão com seu discurso vazio e sem valor, ou quando Deep estupra a novata da equipe por conta de diversos problemas de fragilidade emocional, além dos diversos homicídios feitos ao deter bandidos, sem o peso moral clássico de justiceiros típicos desses tipos de história, apenas por terem uma legitimidade delegada por um público alienado e dócil, as camadas por trás da narrativa vão sendo revelados, destruindo o ideal detrás dos produtos, sacros por não terem de se submeter a nada a não ser a eles mesmos.
Em todo caso, a imagem que os personagens vendem não é necessariamente a mesma relacionada a eles. O ponto mais crítico dessa postura foi retratado durante um evento de fanáticos religiosos, em que os discursos, as posturas e as mensagens eram vinculadas a Deus apenas em um sentido político, intencionando abranger um público específico do mercado, enquanto eles mesmos já se viam de certa forma acima de aquilo tudo.
A grande crítica da série está relacionado com esse consumo desenfreado e alienado, em uma sociedade incapaz de refletir sobre aquilo que está sendo consumido, por terem a percepção de que estão tendo tudo o que desejam. Quando convivemos com heróis, não pensamos em nossos próprios atos e nossas escolhas, já que sempre haverá alguém para nos salvar. Contudo, quando os heróis são vazios e falsos, subverter-se ao sistema é um caminho necessário, desde que não se rebaixe ao nível dos falsos deuses. Se a hipocrisia e a mediocridade são as piores faces da sociedade, não deveríamos desestabilizá-la utilizando-se de suas falhas. Quando a justiça é torpe, as leis injustas e nada é sagrado, o que é certo? O que é moral? Uma vez entendendo que não existem heróis de verdade, talvez algo possa ser feito, nem que seja algo tão simples quanto tomar iniciativa em nossas vidas, buscando um "Eu" em meio a um mar de certezas embutidas.

Texto de Lucas Barreto Teixeira 

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