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Joker: A imoralidade da justiça

Discutir Joker, longa de Todd Phillips, adaptação da história do vilão mais icônico dos quadrinhos da DC, sem cair em redundâncias parece ser desafiador. Afinal, antes mesmo de estrear, o filme foi alvo de críticas e ataques sensacionalistas, alegando que a obra motivaria ataques e surtos coletivos. Ao retratar um vilão sem um herói para contrapô-lo, a narrativa tende a se colocar em uma posição maniqueísta. Afinal, quando vimos Batman e Coringa se enfrentando no Cavaleiro das Trevas, segundo filme da trilogia Nolan do vigilante detetive, as discussões morais são mais profundas, certeiras e problemáticas. Sem um oposto, o Coringa de Joaquin Phoenix tem mais voz e mais liberdade. Quais foram, então, os desafios de retratar tal personagem em tal inédita narrativa?


"Joker" retrata uma cidade de Gotham em período eleitoral, caótica e desordenada, e com uma intensa polarização respaldado no cenário socioeconômico vigente. Greve de lixeiros, cortes estruturais em programas sociais, e Thomas Wayne, o multimilionário, como o provável futuro prefeito da cidade. Neste cenário, Arthur Fleck, interpretado magistralmente por Joaquin Phoenix, trabalha em pequenos bicos em uma agência de palhaços, interpretando "Carnaval". Ao contrário de seu nome de espetáculo, entretanto, o personagem é melancólico e frustrado, tendo de viver com sua mãe, enquanto é atendido pelo programa de serviço social e afunda em seu vício de remédios controlados. Tendo uma doença neurológica, fazendo-o gargalhar em momentos indevidos, a construção do personagem, um aspirante a comediante, é satírica e dolorosa, desconhecendo a verdadeira razão da comédia e da graça.
Em termos narrativos, a longa apresenta alguns problemas, como a utilização recorrente de flashbacks, reforçando ao público de forma didática elementos antes apresentados, tornando a criação artística um tanto pretensiosa, duvidando da capacidade do público. Algumas referências realizadas ao longo do filme podem não agradar, criando um suspense bobo, óbvio e fraco, gerando uma apreensão descabida, brincando com cânones do material original, apresentando personagens como o pequeno Bruce Wayne, sua família, e até Alfred. É necessário dizer que, por não ser um grande conhecedor dos quadrinhos, conheço apenas a origem do herói pelos filmes antecessores, tendo apenas lido, com atenção especial, a maravilhosa "Piada Mortal", obra de Alan Moore que serviu como inspiração tanto neste Coringa quanto o memorável de Heath Ledger. Aliás, mais adiante neste texto, gostaria de fazer uma breve comparação entre os dois personagens, ambos incrivelmente bem construídos, embora por sentidos distintos. Sendo assim, os problemas narrativos da longa não se derivam das discrepâncias do material original, sendo incongruências no próprio roteiro.
O belo no filme é a construção deste personagem, mostrando como esse indivíduo comum se torna a figura principal de um movimento político contra as desigualdades sociais, caótico e brutal. E é exatamente aí que o filme brilha, delineando a essência do personagem respaldado por uma sociedade maldita e injusta. Também é nesse ponto em que as notícias desejaram se apoiar, colocando no filme uma falsa responsabilidade de incentivo à violência. Não gostaria de perder muitas linhas nesse tópico, entretanto é importante salientar aqui que, ao responsabilizar a arte de tais atos, a mídia e o Estado se eximem da culpa, como se a ficção fosse a culpada por todas as infrações sociais. Este tipo de pensamento, além de superficial, é perigoso, por flertar tão diretamente com a censura, realidade presente principalmente em nosso país, desde a censura feita pelo prefeito do Rio de Janeiro. Aliás, a própria longa discorre sobre o assunto, com a composição feita com as matérias e notícias transmitidas pelos telejornais. Assim, Arthur Fleck, sendo bombardeado pelas calamidades públicas, começa a descontar suas frustrações individuais no contexto social, agindo como se suas falhas fossem consequências do sistema retratado pela mídia.
A partir de uma cena chave, quando Arthur reage pela primeira vez ao invés de ressentir-se, seu ato individual é repercutido em uma ação política, abrangendo toda uma classe martirizada e explorada. Aqui, conhecemos o povo, cansado de ser atropelado pelos poderosos, humilhados pelos ricos. Gotham, nesse sentido, diferencia-se essencialmente da cidade clássica onde viria agir, anos no futuro, Batman. Diferente da cidade de Nolan, por exemplo, não é a criminalidade e a corrupção da polícia que causou o caos social. Na longa de Phillips, é o descaso por parte dos privilegiados, a cegueira coletiva de uma classe rica, que causa a falência do Estado. Sem dúvidas, tal decisão resulta em um maniqueísmo natural: sendo a "justiça pública" imoral, é dever se rebelar.
E é nessa hora que a ausência do herói-morcego se torna uma falha. Novamente, o filme brilha ao construir o personagem, detalhando a sociedade, os noticiários, e até as aspirações de Arthur, por meio de Murray Franklin, interpretado por Robert De Niro. Entretanto, ao se aprofundar na discussão filosófica, tão preciosa para a mitologia dessas figuras, o filme falha. Confesso que, imediatamente após retornar do cinema, fui obrigado a assistir novamente ao Cavaleiro das Trevas, fazendo-me uma vez mais me impressionar com suas provocações, tantos anos após seu lançamento. E não, a diferença não está na atuação ou na construção destes personagens. A diferença, essencialmente, está no roteiro, complexo e profundo no de Nolan, e raso no de Phillips. Se, antes, presenciávamos discussões morais entre Batman e Coringa, o comissário e o promotor, sobre liberdade, paz, ordem e caos, agora vemos apenas um lado do debate, sendo reforçado sempre pela visão antagônica de personagens perversos, justificando todas as ações do vilão. Contudo, a nova longa parece complementar a antiga, trazendo elementos negligenciados pela visão privilegiada de Bruce Wayne, e até podendo ser visto como uma pseudo origem para o Coringa de Ledger.
Em suma, encontramos em Joker uma construção de personagem incrível, com uma direção fabulosa apesar da narrativa fraca. Ainda assim, o filme merece todos os elogios artísticos possíveis, tendo todos os aplausos no fim de cada sessão justificados. Um filme com potencial explorado, eletrizante e cativante. E, agora, coloquemos um sorriso em nossos rostos...

Texto de Lucas Barreto Teixeira

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