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Junji Ito e a maestria do horror

 São muitas as formas pelas quais artistas buscaram representar o medo. Desde entidades religiosas até figuras de fábulas, o imaginário popular sempre foi tomado pelo horror. De acordo, todas essas relações são criadas a partir de um senso natural de autopreservação, estabelecendo parâmetros para a interação segura do indivíduo com o ambiente ao seu redor. Em todo o caso, com o passar do tempo, o temor se transformou em verdadeiro fascínio, gerando, cada vez mais, formas de se expressar e comunicar tão primitivo instinto. Da extensa lista de autores que abordam tal tópico, no entanto, Junji Ito é um dos mais fascinantes.


O medo pode se mostrar de muitas formas. Com uma mera transmissão de rádio, Orson Wells apavorou milhares tendo como base o texto base de "A Guerra dos Mundos", de H. G. Wells, assim como Stanley Kubrick, apenas com jogos de câmera e sons, encontrou em "O Iluminado" uma fórmula para se despertar temor no público. No entanto, despertar tais sentimentos não seria possível a presença de um catalisador em especial: o horror. E é na tentativa de se dominá-lo que mestres da narrativa e da arte se unem para representá-lo nas mais diversas formas... mas são poucos os que chegam no patamar de Junji Ito.

O artista japonês, criador de "Tomie" e "Uzumaki", apresenta impressionante habilidade em estabelecer o horror ao leitor. Para ilustrar apenas uma pequena parte do trabalho artístico de Junji Ito, escolho me apoiar na antologia "Fragmentos do Horror", onde reúne pequenas histórias macabras, sádicas, escatológicas e, sempre, impecáveis.


Antes de se discutir qualquer aspecto narrativo ou imagético dentro de suas histórias, é difícil não apontar a clara referência do quadro "O Grito", de Edvard Munch, já explícita na capa, não apenas diretamente pelo personagem que se contorce de forma similar ao original, mas também nos traços e cores ao fundo, deixando clara a estética expressionista adotada pelo autor, que ecoa por sua obra. O personagem em questão protagoniza o conto "Tomio Gola Rolê Vermelha", encontrando-se em uma peculiar situação em que tem sua cabeça arrancada pelo fio de cabelo de uma vidente.

Claro, a arte de Junji Ito é parte central em sua obra, mas é potencializada pela sua narrativa. Quando analisamos o quadro de Munch, podemos entender a história representada na imagem: o píer silencioso, duas figuras ao fundo alheias aos acontecimentos do que se é representado e a figura andrógina surpresa, gritando em terror, completamente desesperado por qualquer que seja o foco de sua missão. Tal incerteza e incompreensão dos fatos é o que permite o observador de preencher, com sua criatividade, o objeto da visão do personagem. Junji Ito, nesse sentido, vai um passo além , criando contos dignos das mais sinceras bajulações, entrelaçando o horror cósmico, surrealista e improvável, expresso em sua arte iconográfica, com a realidade palpável dos personagens, simples e comuns, que se encontram pelo mero acaso com a realidade monstruosa do inimaginável.

Todos outros contos seguem o mesmo princípio. Em "A mulher que sussurra", a protagonista, incapaz de tomar decisões, começa a ser orientada por uma cuidadora que, após a morte, continua a orientá-la. Já em "O Futon", visões de monstros fazem um homem ser incapaz de sair de seu futon, cada vez mais contaminado pelas suas alucinações. A partir de temas comuns ao gênero, Junji Ito não apenas cria a imagem do horror, mas também entende a fórmula narrativa de grandes  histórias. O ordinário contra o extraordinário - uma batalha tão antiga quanto o tempo - que transforma o horror em medo.


Texto de Lucas Barreto Teixeira
O presente texto foi trazido a você pela campanha de contribuição coletiva financiada por nossos leitores. Agradecemos de forma mais sincera a todos os apoiadores.

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