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Apague a luz se for chorar

 A morte é um dos mais importantes temas trabalhados na literatura. Não é à toa, claro, afinal não há nada mais natural do que ela. É nossa companheira injustiçada, eterna na certeza quanto à vida e desagradável de ser lembrada. Poderia facilmente discorrer como um ou outro autor lida com o efêmero da vida, ou como tantos outros sabem dilacerar o coração de seus sôfregos personagens com tanta sensibilidade, mas nada disso seria novidade. Portanto, assim que li os primeiros capítulos do romance de Fabiane Guimarães, sabia que encontrara algo novo e autêntico na forma de se escrever sobre essa tão sensível face da vida.


"Apague a luz se for chorar" se apresenta sem pretensões. Tudo começa com Cecília, uma mulher desamparada pela morte tranquila e pacífica de seus pais, partindo juntos, dormindo abraçados. Vendo-se órfã, retorna da metrópole para sua bucólica cidade natal, antiga, agreste, receptiva. Não há aqui um grande mistério ou uma grande trama prestes a se desenrolar - apenas uma filha triste, abandonada, despida do amor de seus pais. Sua história, entretanto, é compartilhada por João, um veterinário falido, pai de uma criança com deficiência, que lida com outro tipo de luto, o interrompido e cotidiano, sendo obrigado a passar seus dias sacrificando animais de rua, tomando suas vidas de forma mecânica.
Há diferentes formas de se lidar com a morte - nenhuma mais certa ou errada que a outra -, sendo dependentes de questões individuais, culturais, políticas... porém, a autora aqui tenta traçar um contraste claro a partir da dualidade dos dois protagonistas. Sendo ambos veterinários, a questão do sacrifício dos animais molda suas perspectivas, fatigando-os pelo processo, reificando a morte em si. Uma vez tirada de si, a vida parece ser menos valiosa, ou menos tenra, até encontrarem algo para restaurarem seus valores. Cecília, cansada, encontra na morte dos pais uma catarse pelo trauma, tornando-a paranoica, na mesma medida que a faz se importar novamente. João, por outro lado, precisa se agarrar no zelo ao filho, auto penitente e doloroso, para não se afogar nas próprias mágoas. É uma busca pela humanização por meio da dor diária.
A morte não é um fim em si. Tampouco um martírio imposto. Ela é consequência de se existir, e um necessário limite de nós mesmos. Lidar com essas questões requer sensibilidade, e a autora demonstra seu domínio com exímia técnica em seu romance de estreia. Sua escrita é concisa, sem meandros ou exageros, criando aqui uma leitura profunda e encantadora, irresistível e madura. E é pelo equilíbrio do desespero com a sandice dos personagens que tudo se encaixa tão bem. "Apague a luz se for chorar" é, além de tudo, a criação de um diálogo entre essas partes que coexistem em nós. É um convite para abraçar a única certeza herdada em nossa existência.

Texto de Lucas Barreto Teixeira



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