Pular para o conteúdo principal

Eu não consigo ler na quarentena

É verdade. Eu não consigo ler os vários livros empilhados em minha cabeceira, não consigo ver filmes interessantes nem séries do momento. Aliás, nem jogar sem um imenso esforço consigo mais. Angústia? Desinteresse? Ócio? Um pouco de tudo? Sei bem que não sou o único, aliás nem de longe, sofrendo desse problema, então resolvi escrever sobre isso. Estou apelando para experiências pessoais já que estou ficando sem pauta? Com certeza. Mas vamos ver se esse estilo funciona. Quem sabe o cerne da questão apareça aqui.

Esses dias (o colapso da sociedade enquanto conhecemos) estão muito estressantes (é inevitável e iminente), não consigo me concentrar (e não consigo deixar de gritar em desespero). O lazer é um direito humano essencial. Alienar-se é, por muitas vezes, a única forma como podemos encontrar conforto no meio do caos. E sim, as coisas sempre funcionaram assim, mas a rotina sistemática imposta pelo modelo socioeconômico vigente conseguia fazer a gente se esquecer disso... e era mais fácil ler um livro no ônibus lotado, pegar uma sessão em um cinema em um final de semana ou até ver séries quando em insônia. Durante o isolamento, contudo, recebi doses cavalares de tempo vago. Sendo um estudante sem aulas, comecei a estabelecer uma nova rotina, jogando por horas pela manhã, cozinhando pratos demorados nas refeições e fazendo uma limpa em minhas listas de interesse. Claro, isso não durou por muito tempo.

Chega a ser estranho falar de ócio e como se deve ou pode ocupar o próprio tempo. Sem dúvidas essa relação foi estabelecida para adequar mentes a um modelo de produção intensa e abusiva. Entretanto, entender isso não é o suficiente para magicamente fazer todos se sentirem bem sem precisar pensar em como se está usando o tempo. No final das contas, fomos condicionados a termos coisas a fazer, e tal independência na forma como podemos administrar o próprio tempo resulta em angústia. E então? Como lidar com isso?

Uma coisa me tornou muito clara nesse período. O consumo afeta de forma radical como percebemos as obras. Antes do isolamento, em feiras e livrarias, saía com várias bolsas com livros, usados e novos, e não conseguia deixar de lê-los. Contudo, os vários acumulados com o tempo permanecem esquecidos em camadas de poeira. Por outro lado, basta eu encomendar um lançamento que sou capaz de ler em apenas uma tarde, exatamente pelo efeito da novidade. É uma sensação horrível. Sem conseguir pagar os ingressos do cinema, não vejo os lançamentos, por serem disponibilizados em serviços que já estava assinando.

Certamente, essa relação está muito longe de ser considerada uma descoberta, mas é curiosa de se observar de toda forma. De fato, eu não consigo ler na quarentena, tanto por tal condicionamento de não manter interesse naquilo que já fora consumido, tanto pela angústia criada pela situação atual. Não sei como evitar esse segundo elemento, mas é necessário rever hábitos estabelecidos para sugar nossa atenção apenas no novo e caro. Não busco criar metas, já que vejo nesse comportamento a necessidade de transformar seu tempo livre em produtividade, porém há sim meios para barrar tal bloqueio. Procurando vídeos e artigos antigos na internet a cerca dos livros abandonados, tento recriar o interesse, empurrando-me até entrar no tranco novamente. Vocês passam por situações similares? Vamos continuar a conversa aqui nos comentários, quem sabe assim possamos entender melhor o que se passa!


Texto de Lucas Barreto Teixeira

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A hora da estrela - A epifania da morte

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré- história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.  Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré- pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor de dentes que perpassa esta histór...

O desapego da moral em Bukowski

“ -Que vai fazer agora? - Perguntou Sarah. - Sobre o quê? - Quer dizer, o filme acabou mesmo. - Oh, sim. - Que vai fazer? - Tem os cavalinhos. - Além dos cavalinhos? - Oh, diabos, vou escrever um romance sobre como se escreve um argumento e se faz um filme. - Claro, acho que você pode fazer isso. - Acho que posso. - Como vai se chamar? - Hollywood . - Hollywood ? - Ééé... E é isso aí.” Caracterizar Charles Bukowski como um velho bêbado louco é eufemismo. O alemão, naturalizado americano, é um dos maiores expoentes da literatura de seu tempo, além de ilustrar a realidade de sua época com crueldade atroz. A sociedade em Bukowski é hipócrita e suja, imoral e desigual. Mas, apesar de toda dimensão artística e crítica atribuída ao autor, não são esses elementos os almejados por ele. Charles Bukowski (1920-1994) A narrativa de Charles Bukowsi é norteada por sua própria vida. Por meio de seu alter-ego Henry Chinasky, que protagoniza a maior parte de seus livros, o aut...

Cidade Invisível - Folclorização e Epistemicídio

 Quando foi anunciada, há cerca de um mês, tive minhas dúvidas quanto à série "Cidade Invisível". Um romance policial clássico, tendo como protagonista um oficial da Delegacia de Proteção ao Meio-Ambiente do Rio de Janeiro, que investiga a disputa de terra entre uma empresa e os cidadãos pacatos da Vila Toré... mas com um elemento a mais, que a diferencia das demais séries: a utilização de elementos e personagens do "folclore" brasileiro. E é nessa questão que as principais discussões quanto à produção se deram, questionando o que tal liberdade criativa significa em um contexto sociocultural. Então, mais intrigado pelos debates do que pela premissa em si da série, rendi-me a ela. Não há nada de novo em Cidade Invisível. E não digo isso necessariamente como uma crítica. Eric (Marco Pigossi) é o policial clássico, amargurado pela perda da esposa e se vendo obrigado a restabelecer um vínculo emocional com a filha, em cenas clichês de sentimentos desestabilizados por tr...