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The Good Place e o realismo moral

 Esses dias, resolvi rever o excelente seriado "The good place", e com isso todos os sentimentos gerados na época de seu lançamento vieram novamente à tona. Claro, o texto cômico por si só é primoroso, misturando personagens extremamente cativantes com situações absurdas, brincando sempre com o espectador e a própria escrita, culminando em um clássico moderno. O que me motivou a escrever tal texto, contudo, foi a força da analogia criada com a série, em especial com sua mensagem final de transformação. Tendo a temática em mente, lembrei-me de outros casos onde o realismo ético é desafiado, levando-me a uma série de pensamentos que gostaria de deixar escrito, esperando, talvez, algum tipo de discussão.


"The good place" é uma série tão simples quanto é complexa. Em uma idílica pós-vida, quatro almas se encontram em uma espécie de paraíso, sendo recompensados pelas virtudes enquanto vivos. Entretanto, Eleanor (Kristen Bell) percebe estar no lugar errado, visto nunca ter demonstrado qualquer atitude do gênero antes da morte, e recorre a Chidi (William Jackson Harper), um professor de filosofia moral, para aprender a ser "boa", podendo, assim, viver em paz no "lugar bom".
De princípio, a simplicidade da sinopse parece indicar uma obra beirando o genérico, com um conflito simples, embora funcional. A grande questão é que, com o tempo, os quatro personagens principais descobrem estar, na verdade, no "lugar ruim", sendo punido por suas ações, ao invés de serem recompensados. Isso porque, de acordo com o sistema rígido de regras morais vigente no universo, nenhum deles era virtuoso em vida. Dessa forma, a partir dos episódios finais da série, os personagens buscam identificar um erro essencial na escala de virtudes, com o objetivo final de transformar o falho em um sistema coerente e possível com a humanidade em si e seus anseios.


São várias as analogias e mensagens deixadas em "The good place", tornando a obra em algo belo e encantador. No entanto, é a questão do confronto contra as regras morais que mais me fascina. Afinal, a discussão ética na literatura e filosofia, usualmente, discorre acerca dos hábitos e das práticas, visando delegar valor moral a escolhas. Já em "Ética a Nicômaco", de Aristóteles, o debate moral ocorria em tal esfera, e até hoje perguntar-se se algo é "certo" ou "errado" é início de discussões e debates, por se tratar de algo natural da vida em sociedade. Em uma comunidade, nossas ações geram consequências, portanto entender suas repercussões é entender a própria natureza do ser ético.
Entretanto, foi apenas muito recentemente que estudos acadêmicos foram produzidos sobre o significado da própria ética em si. Com a metaética, a discussão de algo ser "certo" ou "errado" deu espaço a um debate sobre o que significa ser "certo" ou "errado". Nesse sentido, o discurso ético passou a ser o verdadeiro alvo de análises, gerando uma série de interessantes questionamentos. Por exemplo: existe algo que é o "certo"? O "certo" é "certo" porque os hábitos humanos deram tal sentido a uma ação ou algo maior que a própria epistemologia humana definiu, na origem do universo, um conceito metafísico do que é o "certo"?
Para ilustrar essa discussão, tomo novamente "the good place". Aqui, existe sim um sistema que define os conceitos de "certo" e "errado", estabelecendo uma relação direta entre ações mundanas e consequências matemáticas, carregadas após a morte. É claro, podemos estar apenas vivendo ao acaso, em um punhado de terra sem normas, onde existe apenas a possibilidade de se criar regras de convivência no contexto social, ou pode existir um deus onisciente com regras claras julgando-nos constantemente de acordo com seus valores tiranos. Na série, porém, vivencia-se o chamado realismo ético natural, onde tais valores não foram criados por uma ideia de "eu", mas sim pelo próprio acaso, assim como foram criados átomos e moléculas. Aqui, existe sim o conceito de "bom" e "mau". Contudo, tais valores, mesmo inerentes, não poderiam ser questionados?


Antes de abordar a solução dada pelo seriado, gostaria de abrir um pequeno parênteses e falar sobre a contestação do realismo moral de forma mais abrangente. Para tal, pego emprestado o dilema principal de Xenoblade Chronicles, um dos mais brilhantes jogos já lançados. por mais que queira muito falar de forma extensa sobre a obra, irei me limitar a apenas um singelo momento na história, em que os personagens, envoltos em uma guerra entre dois deuses, decidem lutar diretamente contra um deles, por não concordarem com seus desejos.
O que me mais instigou na época em que joguei foi exatamente a natureza do embate. Mais do que uma luta pela vida, somos convidados a lutar contra a rigidez de nossa própria criação para se viver verdadeiramente livre. Afinal, ao confrontarmos o deus, Zanza, confrontamos, a partir do mundo por ele criado, a própria realidade em que estamos inseridos. Mesmo deus, físico e de existência inquestionável, pode ser, ele mesmo, questionado, libertando-se do próprio conceito por ele criado.
Por mais que exista uma distinção entre o naturalismo ético e a da divina providência, em ambos os casos há o confronto do realismo moral. Contudo, o debate também é realizado em razões diferentes. Em Xenoblade, os personagens elevam-se ao nível do soberano, derrotando-o por mostrar a força da criação, em conjunto, subestimada pela tirania. Em "the good place", não há força superior. Não há um deus ou um agente capaz que, deliberadamente, criou tais regras morais. Dessa forma, os personagens permanecem em suas condições primordiais, provando a falha no sistema por argumentação e empiria. Eis o grande mérito da série, em minha opinião: realizar um debate ético em um nível além do comum, fazendo-se questionar no que se consiste melhorar enquanto pessoa. E diferente das obras mais clássicas do assunto, como as tragédias gregas e romances modernos, de Tolstói e Dostoiévski, o seriado aborda com bom humor a natureza do ser ético, e não a angústia proveniente da tomada de decisões.
Repito: "The good place" é um clássico moderno. Mesmo com tantas analogias, pode ser apreciado meramente pela sua comicidade, e tais mensagens aos poucos apenas despertam interesse ao público desinteressado em tais questões no princípio. Finalizo apenas retomando o questionamento que me motivou a escrever: o que significa lidar com o realismo ético? Nem todos somos capazes de destronar um deus com nossas mãos, e não há como ter certeza da natureza do outro lado da existência, se é que há algo dessa natureza. Em uma consideração pessoal, vejo como tais obras motivam-nos a ignorar tais questões, ou ao menos a agir ignorando tal consideração. Mesmo existindo algo como o conceito de "bom" e "mau", nenhuma discussão pode se desassociar do lado social, onde todas as discussões começaram. No fim, o "certo" a se fazer sempre está vinculado a uma relação com o "outro", e se fazer o bem ao outro descumpre uma lei qualquer feita ao acaso, então simplesmente ignoremos as considerações de normas sem vínculo com a nossa realidade.

Texto de Lucas Barreto Teixeira
O presente texto foi trazido a você pela campanha de contribuição coletiva financiada por nossos leitores. Agradecemos de forma mais sincera a todos os apoiadores. 

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