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This is America e a Era Disruptiva

Nesses últimos meses, a internet enlouqueceu com o novo clipe musical de "Childish Gambino". O que chamou atenção do público em geral são as diversas críticas abordadas pela letra em conjunto com a performance artística do ator Donald Glover a respeito de grandes problemas contemporâneos, envolvendo racismo, apropriação cultural e violência.

Cena do clipe musical de "This is America". Acesse a música aqui.
Mais do que a violência abordada nas entrelinhas do rap, "This is America" conta sobre uma geração inteira mergulhada no descaso social proveniente de costumes tecnológicos e disruptivos criados e estabelecidos no início desse século. Esses elementos são vistos muito claramente ao serem mostrados crianças com seus aparelhos ligados, alheios aos fatos de um ambiente caótico e violento. Donald Glover evidencia ainda mais esses problemas da hipermodernidade ao se exibir, puxando para si o foco da câmera, como se não quisesse mostrar ao espectador o que de fato está acontecendo.
A tecnologia disruptiva é um termo atribuído por diversos empreendedores de tecnologia, com o sentido de se mostrarem inventivos e como aqueles que rompem com o padrão. Tomo liberdade de evoluir esse conceito para descrever a era disruptiva em que estamos dependentes atualmente, com o auxílio de conceitos do filósofo francês Gilles Lipovetsky, já abordado em um texto aqui no blog.
Lipovetsky descreve a hipermodernidade como uma geração dependente do consumo, em que para ser considerado bem-sucedido ou realizado, é preciso consumir o tempo inteiro. Esse consumo, no entanto, não se limita puramente à aquisição de bens materiais. Lipovetsky acredita que a todo momento consumimos algo; seja uma ideologia política, um filme, uma série, ou até mesmo uma música. Dessa forma, os indivíduos da hipermodernidade criam máscaras sociais conforme consomem.
Assim sendo, a era disruptiva inaugurou uma nova fonte de consumo: o consumo das informações. Em um texto, escrito aqui no blog, comentei a respeito do papel social da mídia. Convém, portanto, resgatar pontuais questionamentos realizados na ocasião para poder consolidar a ideia do consumo de informações.


Desde o princípio da imprensa, com o aperfeiçoamento gráfico de Johannes Gutenberg e a inauguração da era moderna, a informação era fonte de renda dos jornais. Contudo, para poderem vender, deveriam manter íntegro o nome do jornal, exercendo um papel concreto de informar e de mobilizar diferentes classes políticas e sociais. Só que, com o avançar do tempo, as informações também se tornaram disruptivas, sendo baseadas integralmente no sistema de comunicação a elas articulado.Dessa forma, criou-se uma necessidade de se consumir notícias fúteis e sem relevância, de tal modo com que, ao consumirmos a nova mídia, estamos nos incluindo no âmbito social vigente.
Dito isso, defino a Era Disruptiva como a época em que vivemos, onde o consumo do inusitado e do novo, por mais fútil que seja, define o lugar e a relevância do indivíduo no meio a qual está inserido. Os exemplos que posso dar são os mais variados possíveis. Desde o consumo desenfreado de "memes" nas redes sociais até a popularização de "This is America", que ao mesmo tempo critica essa faceta social, também é usado como ferramente de adequação do indivíduos. Esse aspecto coercitivo da sociedade já fora definido por Émile Durkheim, sociólogo francês. Para o autor, os indivíduos agem pautados em uma força, proveniente do Estado e da sociedade, coercitiva, externa e coletiva. Ou seja, todo fato social é definido por conta de uma ação externa, proveniente de outros indivíduos, que forçam a perpetuação de uma realidade a partir de um sistema de exclusão e adequação social.
Em "This is America", vários fatos sociais são representados pelos figurantes que dão vida e cor ao clipe musical. Sejam crianças fazendo parte de organizações criminosas por causa de suas origens ou negros sendo mortos brancos por uma consciência racista imposta, tudo o que ocorre está pautado na coerção do Estado. E, nesse caso, essa coerção está ainda mais forte vinda das tecnologias disruptivas.
É como se o consumo constante nos prendesse a uma situação em que não há como escapar das normas impostas dessa nova sociedade. E assim, somos escravos das tecnologias disruptivas, que nos obrigam a nos vender, como produtos midiáticos e imersos em uma atmosfera de eterna felicidade, sempre vestindo máscaras sociais e disruptivas.


Donald Glover representa muito bem o viés dessa felicidade das redes sociais ao sempre puxar a câmera para seu sorriso brilhante e cativante, não importa o que esteja ocorrendo ao redor. Isso é uma das inúmeras consequências da era disruptiva, que acabou formando uma geração em que a infelicidade é mascarada por fotos sorridentes nas redes sociais com legendas enfeitadas.
Portanto, enquanto o fútil é comercializado e travestido de notícias e ferramentas de inclusão social, aquilo que é relevante é oculto por falsos sorrisos. Não preciso nem comentar sobre os verdadeiros atos de violência algoz referidos no clipe. Basta-me apenas ater-me às mágoas e tristezas alimentadas pelos jovens que vem no mundo ao redor mares e oceanos de felicidade, reprimindo-as e as alimentando ao ocultarem-nas.
Por fim, Donald Glover conclui o clipe com uma pose enigmática, cansada e deprimente. Posteriormente, vê-se o ator sendo perseguido por inúmeros indivíduos brancos, como se estivessem em uma caça às bruxas. Dessa forma, o clipe cria em si uma continuação sinistra. Toda a violência em que Glover foi submetido retornou a ele em forma de repressão a seus semelhantes.
Esse final nos remete aos efeitos da Era Disruptiva. Talvez, remeta-nos apenas a "O" efeito da Era Disruptiva. Repressão gera repressão. Sentimental ou física.
Toda a repressão da era disruptiva vai servir para dar fim a essa era tão contemporânea. Essa é a grande lição de "This is America" para a geração disruptiva. Vale saber, contudo, se estamos preparados para vivenciarmos uma catarse coletiva para dar fim a tantas repressões sociais.  Será que é possível nos desvincilhar dessa era disruptiva? Será que realmente queremos nos desvincilhar dela?


Texto de Lucas Barreto Teixeira 

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