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A Morte de Pedro Gonçalves - Parte VI [FINAL]

Acesse a Parte V
O Escritor,o bêbado, a Prostituta e o delegado ao Fim Da Noite

Pedro Gonçalves saltou do carro com o turbilhão de pensamentos perturbando seu ser. O delírio dos astros dilacerantes o assombravam naquela noite. 
Há mais de duas horas saíra de seu apartamento, deixando para trás suas mágoas, sua incerteza e a própria vida. Trazia consigo uma garrafa de uísque barato. Saudou a noite e bebeu um gole.
Estava em uma praça, sentado na beirada de um chafariz desativado. Gostava daquele lugar em especial. Fora lá onde tudo mudou. Conseguia, inclusive, visualizar a labareda de fogo no asfalto, consumindo sua alma e sua amada, Christiane.
Christiane.
O nome da mulher ainda fazia seus lábios formigarem. A verdade é que nunca havia superado aquela perda, traduzindo seu desgosto nas palavras sujas de textos despretensiosos e ofensivos, deformados na mente de um bêbado fracassado.
Lembrou-se de seu primeiro conto naquela fase maldita.
Era sobre um poeta traído por um amigo, que possuía um caso com a esposa do escritor. Era mais um monólogo em que o corno explica a definição de um idiota, referindo-se ao próprio amigo em si. No final, o poeta revela que assassinou a mulher. Arquétipos, o nome do conto.
Gonçalves se perguntou qual seria seu arquétipo. O de um homem bêbado? O de um frustrado romântico? De uma vítima de uma vida marcada pela fatalidade e pelo descaso?
Bebeu até acabar o uísque na garrafa. Não tinha uma resposta satisfatória para aquela pergunta. Talvez fosse todos aqueles e nenhum deles ao mesmo tempo. Era, e era apenas.
A noite avançava com seu manto crepuscular de ventos cálidos e frios. Gatos de rua corriam, esgueirando-se nos becos e nas ruelas de uma cidade esquecida pela luz. Sentia-se ligeiramente embriagado. As lembranças daquele lugar o machucavam profundamente. Um desgosto profundo marcava sua feição. Levantou-se e se encaminhou até um beco, onde poderia jogar a garrafa e talvez se estirar para dormir. Desejava dormir até o fim da eternidade daquela noite, como um bêbado, como um desgraçado, como um escritor.
Até que, em meio às suas divagações, um vulto se aproximou. Ao se virar, encontrou uma figura encapuzada e medonha, com feições nefastas e abraçada pela beleza noturna. Não sentiu Gonçalves, entretanto, asco ou medo com a visão. Na verdade, sentiu lágrimas límpidas da alma limpando seu rosto. 
Foi a visão mais linda de sua vida.
Gonçalves se aproximou e abraçou a figura por um longo tempo. Ambos choraram pelo tempo, pela vida, e pela inevitável morte. A figura, então, atirou, com o estampido abafado pelos corpos juntos.
O escritor caiu nas latas de lixo com um sorriso no rosto e com lágrimas nos olhos. Fazia muito tempo desde que não sentia isso.
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Cavalcante, Sílvia e Fernando viam a cena com uma espécie de horror misturado à dúvida e enjoo. 
O corpo de Verônica estava estirado na sala, com a parede pintada de sangue. No chão, junto ao cadáver, uma faca reluzia ao brilho tênue e fátuo da madrugada. 
Do lado de fora, Joana esperava com o rosto marcado por lágrimas escuras e com a feição assustada. Cavalcante estava lidando com muitas coisas ao mesmo tempo. Primeiro, o assassinato de Pedro Gonçalves. Depois, teve de lidar com as ameaças de um espírito vingativo e prometeu para si mesmo que não veria mais a mulher a qual começava a nutrir qualquer resquício de sentimento, para o bem dela. E, agora, tinha aquilo. Era demais.
O delegado saiu do recinto, saiu sem olhar nos olhos de Joana e deixou a cena para trás com Sílvia e Fernando pensativos. A dupla havia descoberto uma poderosa informação que poderia trazer uma mudança efetiva no rumo das investigações. Contudo, o assassinato improvável a qual eram submetidos os obrigou a mudar bruscamente de planos. Além de Pedro Gonçalves, deveriam buscar o assassino daquela prostituta.
Sílvia buscava novas pistas, facilmente encontradas na sala. O agressor não se deu nem o trabalho de esconder as evidências. Claramente havia entrado pela saída de incêndio, esperado pela chegada da mulher, matando-a logo em seguida. Uma trilha de sangue sugeria a saída do assassino pelo mesmo caminho pelo qual voltou. Ficou acordado, por uma partida de "cara e coroa", entre os policiais que Sílvia organizaria o perímetro ao redor dos quarteirão enquanto que Fernando iria atrás daquela trilha, que parecia encontrar seu fim em uma ruela perto dali. Eles tinham um palpite, no mínimo estranho e sem sentido, de que o assassino teria seguido até a praça onde foi morto Pedro Gonçalves, não muito longe dali. Não havia uma razão exata para acharem isso, sendo essa ideia apenas uma intuição, talvez originária de uma preguiça de espírito, ao tentar encontrar apenas uma solução que resolvesse ambos os casos.
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O vulto caminhava soturno pelas ruas da cidade. O sobretudo cinza que cobria seu rosto tinha a ponta molhada de sangue. No entanto, não era feito apenas de sombras aquele vulto. Um brilho pálido e suave dava a ele um ar simbólico de etéreo. Faltavam poucos metros para alcançar o destino. Por fim, poderia encontrar a paz.
Chegou à praça. Sentiu uma certa ardência no rosto com a lembrança do acidente.
Foi em uma noite quente de verão. Tinham bebido além da conta. Amavam-se profundamente. Então, a distração veio, e Gonçalves não viu o poste. Bateram. O carro explodiu. O fogo veio e queimou seu rosto. Seu amado fugiu, com medo. A mulher ficou, angustiada, deixando para trás seus cordões de diamante, que posteriormente seriam resgatados pelo sobrevivente. Christiane, por outro lado, morreria para o mundo, mas ficaria presa à terra com sua última promessa: consolidar a morte que lhe foi negada naquela noite.
Quando matou Gonçalves, esperava se matar em sequência. Mas as jóias, presentes e lembranças da vida que já não a era. Mas, agora, estava completa, com todos os obstáculos removidos.
Alcançou o beco. Permitiu sorver uma última vez o ar da noite. Pegou a pistola oculta em sua cintura. Apontou para o rosto deformado. Atirou.
Fernando ouviu apenas o tiro alto e estrondoso. 
Sílvia continuava por sua busca sem sentido e sem mais propósitos.

Cavalcante, por sua vez, pegou um cigarro e o acendeu. Viu as estrelas, ouviu a melódia celeste e cansou-se daquilo tudo. Inspirou a fumaça. Soltou-a lentamente.


FIM
Texto de Lucas Barreto Teixeira
Baseado nas ilustrações de Oswaldo Goeldi

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