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A Morte de Pedro Gonçalves - Parte V

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Ao Fim da Noite


Sílvia tentava se desvencilhar do sono. Tinha papéis jogados pela mesa com fotos, anotações e relatórios. As imagens saltavam em seu rosto e se misturavam com as letras bruxuleantes. Sentia-se só. Tão só quanto as personagens de Pedro Gonçalves, cujas histórias se desbotavam e caminhavam dos papéis para a imaginação da policial. Tinha sua mente focada especialmente em uma anedota peculiar.
Era sobre um cara normal, certinho e careta. Pai de família, católico apostólico romano, com um bom emprego e bastante simpático. E, por isso, era extremamente chato. Se sua imagem era tão santificada e protegida pelas camadas superficiais de uma sociedade hipócrita e narcisista, na realidade o homem sofria de uma angústia profunda em si. Não suportava a rotina. O trabalho o sufocava de um lado, enquanto de outro sofria pelos suplícios da mulher.
Até que, um dia, esse homem resolve fazer um caminho diferente de volta a casa. A rotina diária foi rompida pela escolha de uma curva diferente. Essa revelação o deixou entusiasmado. Não conseguia conter sua euforia. A adrenalina corria pelo seu sangue como um ser consumindo seu espírito. Infartou no trânsito. Fim.
Sílvia se levantou e pegou uma garrafa de uísque. Compreendia a mensagem de Gonçalves. Mas às vezes, a liberdade cobra um preço caro demais. Tomou a bebida pelo gargalo da garrafa. Sentiu sua garganta queimar. Bebeu mais um gole. Guardou a garrafa. 
Voltou a analisar os documentos, de pé dessa vez. Não entendia como o acidente foi capaz de alterar tão profundamente o escritor. Será que se sentia culpado pela morte de sua acompanhante?
Puxou a ficha da vítima daquela fatalidade. Christiane Génessier. Filha de imigrantes franceses. Estudava Letras na época. Possuía textos brilhantes, e chegara a ser chamada de "genial" por um ou outro crítico que se permitiu conhecer sua obra poética.
Obteve acesso a uma de suas redes sociais. Descobriu que ela e Gonçalves tiveram o primeiro contato em uma feira de livros. Dois meses depois, aconteceu o acidente.
Resolveu ir se deitar. Ao fim da noite, poderia pensar em alguma relação...
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O dia chegou irritantemente ensolarado. Cavalcante se espreitou para fora dos braços de Joana e sentou-se na beirada da cama. Sentia uma espécie de culpa em si. O ataque ocorrido durante a madrugada, de certa forma, foi culpa sua.
Checou o relógio. Seis horas. Estaria saindo da delegacia agora se estivesse trabalhando. Olhou para o lado e viu o rosto iluminado daquela mulher meio repugnante e meio aprazível. Tolerava-a, no máximo. Não sabia ao certo o que era o amor, essa palavra ao mesmo tempo tão perturbadora, tão intransigente e tão temida.
Sabia que essa era a última vez que a veria. Não sabia ao certo se sentia saudades. Achava que não. Afinal, aquela não foi a primeira e nem seria última vez que faria isso.
Viu o celular. Lá estavam as mensagens. Sabia bem de quem era, apesar do número oculto.
Aproximou-se da mulher, beijou-a na testa e partiu.
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Verônica esperava o elevador quando Cavalcante saiu do apartamento. Ela vestia um vestido alegre e suntuoso, engrandecido por dois grandes colares de diamante, nos quais Cavalcante prestou bastante atenção por conta do destaque em seu decote. Além disso, tinha os cabelos soltos e lábios vermelhos, como se convocasse o prazer afrodisíaco da noite para o dia. Ele, por outro lado, vestia uma camisa social suja, calças furadas e tinha o cabelo desgrenhado. O elevador chegou. Os dois entraram.
O silêncio na caixa metálica perturbava levemente os presentes. Ao mesmo tempo que hesitavam a falar, nada tinham a dizer. Geralmente, assim ocorre na maioria dos casos em que dois indivíduos compartilham o espaço confinado de um elevador. E, nesse caso, ambos estavam ansiosos para saírem de lá. Mas, ainda assim, o destino os juntava naquele seleto instante, quando um poderia representar a salvação do outro. Entretanto, a porta do elevador se abriu. Cavalcante deu a passagem para Verônica, com o intuito de absorver uma última vez toda sua beleza corpórea e espiritual. Permitiu-se ver novamente os colares, dessa vez apreciando seus contornos e os destaques.
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Cavalcante chegou à casa, serviu-se de vinho barato e sentou-se no sofá. A imagem da bela mulher do elevador o amaldiçoava. Era um canalha, de fato. Nunca mais poderia ter um relacionamento. Pegou um documento guardado em uma mesinha ao lado do sofá. Era um dossiê sobre o filho de seu algoz nêmesis, responsável pela sua perdição. Dentro do documento, além de fotos do corpo do menino assassinado na delegacia, encontravam-se também cartas e cópias das mensagens eletrônicas de ameaças do juiz.
Cavalcante suspirou fundo. Já se passaram cinco anos desde então. Ainda assim, tinha todas suas relações brutalmente encurtadas pelo temor do capataz. 
No fundo da gaveta onde guardava o dossiê, fotos de suas antigas companheiras forravam aquele nefasto santuário. Pegou de sua carteira uma impressão tosca do retrato de Joana. Beijou-a e guardou junto às outras.
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Sílvia acordou em sobressalto. Arfava com o terror do pesadelo. Sentia o suor frio correndo pela sua face.
Absorveu a atmosfera cálida da noite. Inspirou o ar frio que espreitava pela janela. Que horas eram? Pegou o celular, esquecido no chão da sala, e viu no visor mais de dezoito ligações perdidas de Fernando. Já eram oito da noite. Dormira tanto assim? Estava tão esgotada a esse ponto?
De Fernando, ouviu uma mensagem de áudio. O parceiro descobrira algo importante. Parecia animado. Sílvia recolheu rapidamente seus pertences, saiu do apartamento, desceu correndo as escadas e entrou em seu carro.
Vestia a mesma roupa do dia anterior, na qual passara o dia todo dormindo. Tentava afastar o mau pressentimento que sentira ao acordar. Um frio estranho e exógeno corria em seu sangue. Mas não conseguia afastar a imagem concebida do acidente de Gonçalves e Génessier. Via a coluna de fogo dançando e consumindo tudo à frente, queimando a face da menina e sufocando-a com a fumaça acre e negra da morte. 
Rodou a cidade meio sem rumo. Ainda não estava raciocinando direito. A delegacia estava próxima. Parou o carro e esfregou seus dedos calejados em sua face cansada. Dirigiria com calma. Viu uma pessoa querendo atravessar, coberta dos pés até a cabeça. Deu a passagem, não conseguindo parar de visualizar por baixo daqueles vestes suntuosas o rosto deformado de Christiane.
Partiu com o carro.
O vulto da noite, por sua vez, entrou em uma ruela e seguiu, iluminado apenas pela solidão da noite. Gatos pretos o vigiavam de longe, revirando latas de lixo e espreitando pelos caminhos dos astros distantes do domo celeste.
Andou por algumas quadras até chegar ao prédio. O mesmo prédio onde, na noite anterior, Cavalcante entrara apreensivo e temente à morte. No entanto, o que o delegado não sabia é que aquela não tinha sido a última vez em que iria ao recinto.
O vulto entrou pela escada de incêndio, na lateral do prédio, com a entrada possibilitada apenas pelo ataque no apartamento de Joana. Esgueirou-se para dentro do prédio com calma e em silêncio.
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Verônica chegou tarde e bêbada, com os colares em seu peito. O brilho das jóias a excitava, de alguma forma. Não desejava estar com mais ninguém se não com aqueles diamantes. Quando abriu a porta do elevador, ouviu sua vizinha chorando. Não se importou com o ruído estridente da mulher. Não há problema, afinal de contas, em chorar por perder alguém. O que ela não podia, entretanto, é estender o luto para além do fim da noite. Pois é como já dizia um velho sábio... ao fim da noite, apenas sexo, álcool e a luz do sol. E basta!
Lembrou-se de seu último cliente, quem havia proferido aquelas palavras, e sentiu um pouco de remorso pelo roubo dos colares. Olhou para as jóias com aquele olhar compassivo e misericordioso dos bêbados, e permitiu-se soltar lágrimas. Não há problema, afinal de contas, em chorar por coisa alguma.
Abriu a porta, mal viu o vulto, e teve a vida arrancada pelo peso da lâmina da faca do agressor.
Era o fim da noite, sem sexo, sem álcool, sem a luz do sol...

Fim da Parte V
Acesse a Parte VI [Final]
Texto de Lucas Barreto Teixeira
Baseado nas ilustrações de Oswaldo Goeldi

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