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Bukowski e Rubem Fonseca - A literatura amoral

De um lado, um bêbado, depreciativo, caricato e sarcástico. Do outro, um intelectual, graduado em Ciências Jurídicas e Sociais, policial brilhante e professor universitário. As divergências ao redor de Charles Bukowski e Rubem Fonseca, em caráter pessoal, são tantas que, talvez, não coubessem somente neste texto. No entanto, é inquestionável a semelhança entre as obras dos dois escritores, não tanto na temática, mas na visão da realidade para cada um.

Charles Bukowski (esquerda) e Rubem Fonseca (direita).
Filho de um soldado norte-americano e de uma jovem alemã, Henry Charles Bukowski Jr. buscou, pela escrita, um propósito para sua vida despretensiosa. À base de bebidas, sexo e drogas, o escritor não apenas fascinou gerações com sua escrita veloz e depreciativa, como também pôs um fim à Geração Maldita dos Estados Unidos. Tendo um caráter auto-biográfico, suas obras sempre refletiam sua vida depressiva e niilista, sem ambições e sem caráter. Dessa forma, Bukowski não apenas falava sobre sua vida como também abordava o sentimento de solidão vivenciado durante o século XX pela humanidade, um sentimento triste de abandono à moral e aos costumes vigentes.
Por outro lado, Rubem Fonseca, autor de clássicos como "Agosto", "A Grande Arte" e "O Seminarista", mesmo possuindo uma educação clássica e tendo alcançado um patamar intelectual e acadêmico elevadíssimo, também expõe em seus livros o mesmo sentimento expresso por Bukowski. Evidenciado primeiro por sua escrita, fulminante e direta, e depois pela sua narrativa, marcada por romances policiais com tons de noir, o autor não apenas ilustra o sentimento derrotista ao redor de seus personagens como também retrata a desesperança e a crueldade dos desejos humanos.
Assim, os dois autores expõem uma grande tendência da literatura moderna / contemporânea. Com personagens frágeis e corruptíveis, heróis sem moral e tendo como a estrutura social os vilões das narrativas, ambos escrevem sobre a amoralidade das sociedades modernas.
Como exemplo, uso a figura de Henry Chinaski, protagonista da maior parte dos textos de Bukowski, um escritor que vive em função do vício do álcool e de corridas de hipismo. Em "Factótum", segundo romance do autor, o personagem viaja pelo país em busca de empregos temporários, passando por figuras passivas de esquecimento tanto do protagonista quanto do leitor, enquanto chafurda em poços de lama de sexo barato e de decadência humana. Dessa forma, Henry luta para conseguir se encaixar no mecanismo social, mesmo sendo incapaz de fazê-lo tanto pela sua falta de vontade quanto pelo seu desprendimento de responsabilidades e de ambições.
De semelhante forma, Rubem Fonseca o faz em "O Caso Morel". No romance, o artista plástico Paulo Morel é detido pela suspeita de ser autor do assassinato de uma mulher. A partir de seus próprios relatos, contudo, o leitor passa a entender a obsessão e a mente deturpada do homem, que acaba se revelando como inocente pela investigação do detetive Viela, tão perturbado e frágil quanto Morel. A trama, no entanto, percorre muito mais a vida pessoal do artista, creditado pouco a pouco como um homem sem escrúpulos com diversas mulheres dividindo sua casa consigo na condição de esposas.

Nesse sentido, as personagens criadas por ambos autores refletem a condição de vítimas do sistema vigente. No primeiro caso, Chinaski representa um homem marcado pelas contradições do sistema econômico-social dos Estados-Unidos, baseada no hiperconsumo, na futilidade do status social a partir da posse e da geração de indivíduos sem personalidades e sem talentos. Já o brasileiro, muito em conta pela sua própria experiência profissional, critica arduamente a justiça nacional, os interesses políticos e a negligência a questões sociais básicas, tais quais como os sistemas educacionais e carcerário.
Logo, tendo como a sociedade sistemática e egoísta como vilões, os autores ilustram, com suas histórias, a solidão e a angústia do cotidiano dos Novos Tempos. Rubem Fonseca, inclusive, também iria delegar em alguns livros, como "Agosto", dores físicas como resultado da vivência social. Nesse caso, o protagonista, delegado e frustrado ativista político, sofre por dores no estômago, consequência de seu altruísmo, uma vez que as boas-ações são "punidas", seguindo essa perspectiva.
Como solução para essa questão problemática, Bukowski mostra uma vida regrada pelas drogas, bebidas e pelo sexo. Afinal, já que não há formas de mudar a realidade social, ao menos que se possa viver de forma mais aprazível possível. No entanto, Rubem Fonseca encontra uma solução um pouco melhor.
Em "Bufo e Spallanzani", o escritor Gustavo é amante de uma vítima de assassinato. Durante a narrativa, o protagonista busca se recuperar da perda enquanto é investigado por Guedes, personagem recorrente na literatura do autor. Para tal, Gustavo tenta escrever um novo romance.
Já em "Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos", o protagonista é um cineastra brasileiro atormentado por sonhos obscuros e desejos torpes. Para escapar de seus demônios, ele viaja para a Alemanha, com o objetivo de buscar inspirações.
Os exemplos são tantos que se estenderiam por tempo indeterminado. Entretanto, o ponto em comum de todos eles é a figura do artista. A Arte, para Rubem Fonseca, seria a solução para se alcançar um patamar além da realidade tormentosa e vil. Diferentemente de Bukowski, a sociedade não deve ser contornada ou tolerada, mas diretamente confrontada, apesar dos custos dessa luta. Assim, Rubem Fonseca mostra um caminho para se contornar a amoralidade e o niilismo da contemporaneidade - a Arte e a subjetividade humana.



Texto de Lucas Barreto Teixeira

Comentários

  1. Apesar de meu receio em mergulhar em tremenda realidade, aquela dura, da qual queremos fugir muitas vezes, gostaria de conhecer as obras de ambos escritores. Vamos ver... ;-)

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