Sem qualquer sombra de dúvida, a literatura brasileira é um dos maiores ícones culturais no contexto tanto nacional quanto mundial. Importando e exportando conceitos, personagens e estilos, ela foi capaz de alimentar a imensa demanda de produção literária das atormentadas mentes presentes na vastidão dessa pequena Terra. E é de um grande personagem da literatura que desejo explorar neste limitado texto. Apesar de não ser tão marcante quanto as “mulatas”, ou dos “burros” e “ignorantes”, arquétipos que, creio eu, são encontrados, juntos com tantos outros, em grande parte das escolas literárias, acredito que sua importância, em muitos casos, suplante a caricatura satírica, provocadora e enfadonha. Refiro-me, no caso, aos errantes amargurados da literatura brasileira.
Ao meu ver, um dos personagens mais icônicos e amargurados na literatura é Bentinho Santiago, o Dom Casmurro, de Machado de Assis. O romance, até hoje amplamente debatido por acadêmicos e leitores, trata-se das memórias do Bruxo do Cosme Velho, que, já ao fim da vida, decide narrar sua relação com Capitu, o grande amor de sua vida. O romance entre eles, no entanto, constrói-se desde cedo em cima de conflitos e insegurança. Inicialmente, Bentinho vê-se obrigado a seguir uma carreira eclesiástica, o que lhe impediria de se relacionar com Capitu. Contudo, ao invés de agir sobre a situação, o menino se deixa ser consumido por seus devaneios esperando que algo afete sua situação.
Após Capitu resolver esse e outros problemas posteriores, Bentinho por fim consegue se casar e levar uma vida conjugal com a amada. Entretanto, consumido por uma terrível cólera de ciúmes, passa a acreditar piamente que Capitu havia lhe traído com Escobar, seu melhor amigo. Tanta amargura e desconfiança acaba por fazer dele um homem patético e mesquinho, até o ponto em que expulsa Capitu de casa com seu filho, fazendo-a se mudar para a Suíça.
Bentinho, todavia, ao sentar-se para escrever suas memórias, experimenta um terrível remorso, implícito ao longo do texto, por não ter se permitido vivenciar uma alegria perene e eterna por conta de seu espírito amargurado. Os devaneios de Machado, que se misturam aos de Dom Casmurro, gerando um personagem-autor, evidenciam também um caráter de ser errante, não no sentido físico, mas em uma esfera metafísica.
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Machado de Assis (1839 - 1908), autor de "Dom Casmurro", "Memórias Póstumas de Brás Cubas", "O Alienista", entre outros. |
Para ser possível a compreensão do conceito metafísico do “errar”, aproprio-me do mais amargurado escritor nacional. Graciliano Ramos, além de ter uma vasta obra crítica e ilustradora das terríveis condições sócio-econômicas de sertanejos, tem em si uma profunda angústia dentro de si. E, em “Memórias do Cárcere”, livro póstumo em que escreve suas memórias sobre o período em que foi preso pelo regime totalitário do Estado Novo de Getúlio Vargas, seus pensamentos permeiam pela sensação onírica de se sentir deslocado e desconfortável o tempo todo. Além disso, Graciliano Ramos afirma:
“Naquele momento, a ideia da prisão dava-me quase prazer: via ali um princípio de liberdade. Eximira-me do parecer, do ofício, da estampilha, dos horríveis cumprimentos ao deputado e ao senador;”
Nesse sentido, Graciliano aponta para uma causa de sua angústia: o conviver social.
O autor também, ao escrever a novela “Vidas Secas”, daria um sentido ainda mais profundo aos errantes da literatura. Talvez, a amargura de Fabiano, Sinhá Vitória, suas crianças, do papagaio e de Baleia seja a mais profunda e mais clara em toda literatura nacional. Andarilhos em busca de uma saída da terrível seca, buscam na miséria de seu ser algo que justifique suas existências. Presos na condição de pobres, desinformados e bestializados, reagindo ao meio sem qualquer resquício de agentes efetivos, vivem mergulhados no oceano de angústia que é o sertão.
Contudo, como antes descrito, a causa desse sentimento é claro. Ao sentirem-se deslocados da realidade social vigente, e buscando sempre certa aceitação de outros indivíduos, a angústia é criada.
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Graciliano Ramos (1892 - 1953) foi um dos maiores nomes dos romancistas da década de 1930, destacando-se pelas obras "São Bernardo", "Angústia", e outros. |
Outro grande personagem da literatura canônica nacional amargurado em sua condição de nômade é o português Jerônimo, do romance "O Cortiço", de Aluísio Azevedo. O estrangeiro, uma vez instalado nas terras brasileiras com sua esposa e filha, sofre de uma paixão dilacerante por Rita Baiana, uma mulher mestiça sensualizada e extremamente dona de si mesma, capaz de jogar com os sentimentos do mais carrancudo dos homens. Uma vez preso pela terra peca e libidinosa, Jerônimo passa a cometer atos atrozes para conseguir mordiscar o fruto da tentação, chegando ao ponto de matar Firmino, o namorado de Rita, e de abandonar a família para viver com a baiana.
Entretanto, uma vez obtendo êxito em sua empreitada, Jerônimo deve viver com o sentimento de remorso, culpa e arrependimento pelo realizado. Novamente, o conviver social o fez cometer atos que o fizeram mergulhar na mais profunda angústia. E, para superá-la, aprisiona-se no vício da bebida, experimentando liberdade semelhante a qual Graciliano descreveria, anos mais tarde.
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Aluísio de Azevedo (1857-1913) |
Portanto, esses errantes, acostumados à miséria da alma e da culpa, enriquecem e aprofundam ainda mais nossa rica e vasta literatura. Contudo, apesar de apresentarem tanto em comum, vejo neles figuras muito únicas e peculiares, herdando em seu comportamento muito daquilo que foi vivenciado pelo autor de suas histórias. Seja por amor, pela pobreza de espírito ou pela fraqueza de caráter, esse sentimento pode ser observado com muita evidência e com especial interesse. Afinal, o amor pela literatura provém desses pequenos detalhes, espalhados como tempero doce em um saboroso prato, rico de conteúdo e de cultura. Esperemos, então, que nossos angustiados e amargurados continuem vagando pelo oceano da extensa e apetitosa literatura.
Texto de Lucas Barreto Teixeira
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