Pular para o conteúdo principal

Laranja Mecânica – Liberdade ou Segurança?

Há algum tempo atrás, escrevi sobre o filósofo inglês Thomas Hobbes e comparei suas ideias com a literatura de H. P. Lovecraft. No artigo, abordei rapidamente sobre a necessidade, para o pensador, de limitar os desejos humanos, pelo Estado, a fim de que se pudesse alcançar uma sociedade plena, sem conflitos, e relativamente justa. Esse pensamento derivou-se de sua constatação de que o ser humano, em seu estado natural, é egoísta e individualista, portanto, em sociedade, caso sejam deixados à mercê de seus estados naturais, os humanos iriam entrar em um estado de “Guerra de Todos contra Todos”.
Naturalmente, a partir dessa conclusão, Hobbes deixa aberta a discussão de liberdade e segurança. Afinal, o que deve ser priorizado: o bem-estar individual ou o coletivo? Para estruturar esse debate, apoiar-me-ei no filme “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick, baseado no livro homônimo de Anthony Burgess.


Na longa, o jovem Alex apresenta-se como líder de uma gangue de delinquentes em uma sociedade distópica. Em sua introdução, o protagonista revela suas máscaras sociais – a de criminoso e a de filho honesto e bom – tendo como união de extremos o gosto pelas composições de Beethoven. A dicotomia pode ser explicada também com ideias hobbesianas, caso levemos em consideração que a “família” seja uma construção social, ou seja, uma vigília do Estado. Nesse caso, a família serviria como ferramenta para limitar os anseios e os desejos de Alex, que em um ambiente externo agiria de acordo como sua natureza determina. Entretanto, a arte, agora, aparece como estranho, e voltará a ser abordada em outro contexto.
Inicialmente, o grupo de delinquentes aparece cometendo uma série de delitos graves, sempre buscando posse sexual e uma procura pela imposição de superioridade, como verdadeiros animais selvagens. Todavia, após um surto de egoísmo, Alex desconta em seus amigos suas frustrações de maneira violenta, rebaixando-os. Consequentemente, em uma invasão malsucedida a casa de uma senhora, seus amigos se vingam de Alex, resultando em sua prisão.
No cárcere, podemos compreender um pouco melhor a figura de Alex a partir do trecho de uma cena. Nela, o protagonista está lendo uma bíblia, mostrando-se interessado para seus vigilantes. Contudo, ao invés de aproveitar as lições moralistas cristãs, o prisioneiro se vê na figura de soldado romano, chicoteando as costas lanhadas de Cristo. Essa contradição de “ser” e “pensar” é a síntese do sufocamento do estado natural do indivíduo. E como descrito como função do Estado por Hobbes, logo Alex é apresentado como cobaia de um experimento de “pacificação”, nova ferramenta para tal objetivo.


No segundo arco do filme, um partido político apresenta uma solução para erradicar a violência na sociedade. Esse fato, em um período anterior ao de eleições, apresenta-se como algo deveras útil para a propaganda política.
Dessa forma, Alex é escolhido como cobaia do experimento, com a promessa do fim de sua pena na prisão. O jovem então é levado para um edifício governamental onde é mantido para realizar sessões do teste. Nelas, é preso por cordas e com pinças para deixar seus olhos abertos. Previamente drogado por remédios especiais, é obrigado a assistir a cenas brutais e violentas de estupro, assassinatos e afins. Em seu organismo, as drogas agem fazendo-o sentir fortes náuseas e enjoos. Assim, seu corpo relaciona o mal- estar com o que é moralmente errado, transformando-o em um indivíduo avesso à brutalidade.
No entanto, em uma das sessões, foi reproduzida uma sinfonia de Beethoven. Apesar das reclamações da cobaia, a música não foi interrompida, sendo tocada até o fim.
Ao fim do suposto tratamento, Alex tornou-se completamente inofensivo, sofrendo de um terrível desgosto sempre que algo brutal ocorresse perto de si. Alex tornou-se um cidadão, seguro e responsável. Em ampla escala, o governo poderia erradicar a violência. Não existiriam mais crimes, nem delitos, nem insegurança nas ruas, muito menos a liberdade.
De fato, Hobbes acreditava que a erradicação da liberdade era um mal necessário para a segurança social. Mas, no caso de Alex, a subjetividade também é completamente extirpada, fazendo-o se tornar uma “coisa”, deixando de ser alguém. Nesse caso, o gosto artístico simboliza não os desejos naturais ou as imposições do Estado, mas sim a subjetividade e a humanidade.


A conclusão do filme se dá com uma série de eventos em que a temática “liberdade e segurança” é abordada. Na cena em que Alex sofre de violência de antigos amigos, agora policiais, critica a opressão estatal e seu fator coercitivo. Já a cena em que uma antiga vítima tortura o protagonista com sua sinfonia favorita, realça a ideia que a liberdade e o egoísmo natural do homem são indivisíveis. Entretanto, no fim, Alex sofre uma operação neural em que o partido de oposição consegue superar os resultados obtidos com a experiência anterior.
Logo, o debate é levado ao campo político, questionando se o papel do Estado é, de fato, garantir a segurança pública ou a liberdade individual, já que a coexistência de ambos aparenta ser impossível. Entretanto, Kubrick não responde as perguntas levantadas ao longo da película, dando ao telespectador a oportunidade de procurar uma verdade subjetiva.  Afinal, com a nova incógnita na equação, o resultado pode variar dependendo da interpretação pessoal de cada um. O que se sabe apenas é que, no íntimo de cada um, não há como eliminar a subjetividade, mesmo com o mais algoz mecanismo de repressão estatal.

Texto de Lucas Barreto Teixeira

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Episódio 01 - Análise de "Misto-Quente", de Charles Bukowski

Como complemento ao último post sobre os romances de formação, analisei a obra citada, "Misto-Quente", de Bukowski, e destaquei seus principais pontos. Texto de Lucas Barreto Teixeira

O controle de massas pela ignorância

Há diferentes formas pelas quais um autor pode se expressar na literatura. O gênero fantástico, com suas incontáveis vertentes, estabelece uma realidade absurda, seja ela futurista ou mística, improvável ou verossímil, complexa ou simples, de modo com que um problema possa ser abordado de forma mais criativa, dinâmica e elucidativa. Nesse contexto, as distopias foram formadas a partir da percepção política e social de certos autores em relação ao seu tempo, em que governos tiranos cerceiam as liberdades individuais, questionar já não é mais permitido, a a vida se torna fútil e patética. Dentre a vastidão de obras que se apoiam nesse princípio, três clássicos da literatura não apenas definem o gênero como também estabelecem uma série de correlações entre eles, criando uma vasta e complexa crítica à sociedade de nossos tempos. Da esquerda para a direita, Aldous Huxley, Ray Bradbury e George Orwell, respectivamente autores de "Admirável Mundo Novo", Fahrenheit 451" e ...

A hora da estrela - A epifania da morte

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré- história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.  Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré- pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor de dentes que perpassa esta histór...