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O policial filósofo

Na República de Platão, os indivíduos viveriam condicionados e regidos pela lei de um soberano, um Rei, desde que seguisse as premissas básicas do pensamento racional e lógico. Em uma utopia governada por um rei filósofo, relativa paz reinaria no corpo social, protegido por indivíduos selecionados com critérios robustos, os defensores da sociedade. No entanto, quando a sociedade falha e a política é fútil, não existe filósofo ou guerreiro capaz o suficiente de frear o cinismo e o pessimismo humano. Nesse cenário, Luiz Alfredo Garcia-Roza surgiu com um personagem que não apenas vivencia tais conflitos como também resgata o ideal filosófico no cotidiano.


Quando o ordinário é a violência descabida, e assassinatos, roubos e agressões compunham o quadro rotineiro, são os pequenos casos que chamam a atenção. Com sua série de livros protagonizada por Espinosa, um policial moralista e direito, o autor não aparenta estar interessado em escrever sobre a brutalidade e o potencial destrutivo do homem. Afinal, o bandido está tanto nas ruas quanto em sua delegacia e em sua própria casa, em uma realidade onde nada nem ninguém é realmente puro.
Dessa forma, muito sabiamente Garcia-Roza desloca o foco deste cenário desolador para casos aparentemente menores. Ao invés de serial killers e massacres arquitetados por mentes criminosas brilhantes, delegado Espinosa sente mais interesse na loucura não percebida de seus casos. Sem negar a herança de seus estudos nos campos de psicologia, o autor amplia o pressentimento e a intuição para se criar algo novo, uma investigação criminal sem dados físicos, em alguns casos até sem crimes, passando-se mais na mente desorganizada do delegado que na realidade propriamente dita.
Em termos narrativos, seus romances seguem estruturas incomuns ao gênero. Ao invés de produzir um grande suspense que alcance um ápice na revelação dos fatos, o autor escolhe produzir finais inconclusivos ou ilógicos, com maior foco na construção psicológica dos personagens envolvidos. Os hábitos, os diálogos, os pensamentos - tudo escrito tem como grande objetivo refletir sobre a natureza dos presentes, entregando ao delegado a responsabilidade de deitar seus suspeitos em divãs, assim como a si próprio.


O cenário dissonante de Copacabana contribui para as divagações do policial. De um lado, uma multidão extensa e sem sentido, formada por uma massa onipresente e autoritária. Do outro, o vazio e a infinitude do silencioso e absoluto oceano. Tendo tudo isso construído, basta apenas refletir, incessantemente, sobre sua realidade. Eis aí o momento exato em que Espinosa se torna o policial filósofo, servidor público e psicanalista de seus arredores.
O caso em si já não mais importa. É a hipótese, o potencial, as coisas como poderiam ser, além das possibilidades intangíveis que compunham a mente despojada e despretensiosa do protagonista. É possível identificar um ensaio no meio do romance policial por conta dos atributos que se apresentam ao leitor, ainda que não seja um veredito final. O autor fornece escolhas para serem seguidas, ao invés de simplesmente deliberar entre o texto filosófico e a ficção sem propósito. Afinal, por mais atroz e bárbaro o mundo seja, há sempre a esperança de se encontrar propósito em meio a tudo isso, nem que seja vivendo tendo como base delírios da realidade.

Texto de Lucas Barreto Teixeira


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