Pular para o conteúdo principal

O Falcão e o Soldado Invernal - Análise Crítica

 O Universo cinematográfico da Marvel é um dos eventos culturais mais fascinantes dos últimos anos. Apesar da inconsistência de qualidade dos filmes, a coesão das narrativas sempre foi surpreendente, estabelecendo personagens e relações intricadas ao longo dos anos. Após "Vingadores Ultimato", no entanto, o entusiasmo em relação a esse universo parecia ter se apaziguado, pelo teor de conclusão dado nos personagens mais importantes da saga. Agora, com "O Falcão e o Soldado Invernal", tal impressão foi desfeita com deleite e maestria, entregando uma série de temas profundos e desenvolvendo personagens em arcos narrativos incomuns até então, trazendo consequências interessantes a tal universo, capaz de gerar ainda mais fascínio no futuro.


A série não é a primeira após os eventos de "Ultimato", porém é a primeira que me despertou o interesse de escrever sobre. Por mais divertido que "Homem-Aranha: longe do lar" seja, ou mesmo com o suspense instigante de "Wandavision", no máximo achei as narrativas entretidas, nada que tenha me feito ansiar pelos novos títulos. Isso tudo mudou com "O Falcão e o Soldado Invernal", de pulso forte e sem temer as temáticas levantadas pelos personagens.
A série, de início, apresenta os "apátridas", uma organização política de cunho anarquista que luta pelos direitos de refugiados com os cenário global criado pela insanidade de Thanos. Liderados por Karli Mongenthau (Erin Kellyman), o grupo é perseguido por forças internacionais, sendo taxado de terrorista por suas ações radicalizadas pelos confrontos entre as duas forças. Nesse cenário, Sam Wilson (Anthony Mackie), o Falcão, e Bucky Barnes (Sebastian Stan), o Soldado Invernal, juntam forças para impedir a eventual catástrofe advinda de tais fagulhas.
A narrativa, a princípio, parece ser simplória, delegando a anarquistas o papel de vilania e às forças militares dos Estados Unidos o papel de heroísmo. Contudo, quando Sam reluta aceitar o escudo do Capitão América, o governo norte-americano delega o título a John Walker (Wyat Russell), um soldado com méritos por suas ações no Oriente Médio, branco e loiro, causando uma impressão midiática positiva no país. A partir de então, os protagonistas passam questionar o verdadeiro propósito de suas missões, tendo de repensar suas identidades.

O grande sucesso da série foi investigar o que significa o manto de Capitão América. Pelo mero nome do herói, é possível reduzi-lo a mero agente político de seu país, protegendo seus interesses acima de tudo. Contudo, ao longo de tantos anos de quadrinhos, Steve Rogers, o capitão original, passou a defender uma ideologia muito distante do que o país se tornou, e isso foi, de forma superficial, sempre refletido nos filmes, sendo inclusive considerado um fugitivo internacional, um verdadeiro pária. Ao se aposentar, no fim de "Ultimato", Rogers entrega o escudo a Sam em um simbolismo de lealdade e de fé, em franca e bruta confiança a seu maior e mais fiel amigo. Contudo, ao invés de apenas aceitar o peso do nome, ele hesita, delegando uma nova série de símbolos ao escudo.
Por mais ficcional que o universo cinematográfico da Marvel seja, ele é um espelho da nossa realidade, e os produtores sabiamente abraçam o conceito com ainda mais intensidade aqui. Steve foi um soldado que lutou contra nazistas, defendendo a vida humana, apenas para despertar em um futuro cruel, em um país imperialista, bárbaro contra seu próprio povo e erguido pela desigualdade. Sam, por outro lado, serviu a vida inteira a uma bandeira ingrata, cruel a ele e a sua cor, sabendo viver em um país que nunca o aceitaria. Quando John Walker toma o título e persegue os ditos terroristas, ele apenas segue ordens, pautado por um governo que o ensinou a odiar. Se a intenção dos apátridas é nobre, apesar de usar táticas sujas, o novo capitão américa foi criado por esse jogo de violência, onde a ele é dada a permissão de matar qualquer um que se opõe à crueldade do sistema.


Seguindo a ideia de se entender a essência do manto do capitão américa, a série se desdobra com Isaiah Bradley (Carl Lumbly), um super soldado criado pelos Estados Unidos por um experimento em soldados negros, como cobaias descartáveis. Com a inserção de tal personagem, a série aborda com muito tato a relação de pessoas racializadas com o país, que não deixa impune nem aqueles em posição de poder. Mesmo sendo um dos Vingadores, Sam é levado preso por discutir com seu colega, branco, na rua, e tem sua solicitação de crédito negada em um banco, por não ser "importante" aos olhos do sistema de capital e de justiça do país. Isaiah é uma personalidade histórica tão importante quanto Steve, mas foi preso por trinta anos em uma prisão e teve seu nome apagado dos livros de história, abandonado pelo governo. Por isso, com pesar e angústia, diz a Sam que nunca seria possível existir um capitão américa negro.
Todos esses episódios constroem, de forma gradual, um sistema de percepções ao redor de Falcão e o Soldado Invernal. Se antes pensavam no escudo como mera lembrança de um amigo querido, agora começaram a vê-lo como é, de fato: a representação de uma ideologia. Steve usava o escudo para defender a vida e a integridade humana contra os algozes. Walker usou o escudo para executar os inimigos de seu país, fazendo tudo de acordo com a forma como foi treinado a fazer. Já Sam? Ele toma o escudo para si, em um ato de bravura muito maior que seu antecessor, defendendo sim a vida, mas sem servir de forma cega os propósitos de uma política suja. Em frente às câmeras, após salvar a vida de líderes mundiais, demonstra a razão dos apátridas, desafiando as forças internacionais, operando mudanças concretas na organização mundial. A franca brutalidade da série se encontra aí, em meio a esses temas, revelando-se enquanto uma história emocionante e de esperança, tão necessária em nossos tempos.
Há muito a se tirar ainda da série, antes de mergulhar nos elementos convencionais, comuns às narrativas desse universo. Contudo, além da temática da essência do manto, o que mais se destaca é a relação entre os dois personagens principais, que evolui com o passar da história para se tornar uma relação honesta e madura. Parece ser uma anotação interessante, mas é raro ver personagens masculinos revelarem sentimentalismo entre eles mesmos, e aqui existem vários momentos de abertura que são muito bem-vindos. Apenas para destacar, existe uma cena específica em que Bucky finalmente entende Sam por ter se desfeito do escudo, e como consequência ele pede desculpas. Novamente, parece ser algo pequeno, mas são esses momentos que tornam a série em uma obra incrível. O sentimento de união é reforçado a todo instante, e é algo que realmente precisamos ter nos dias de hoje. E é vendo esses heróis, tão poderosos, de forma tão humanizada, que podemos nos espelhar, em direção à mudança.

Texto de Lucas Barreto Teixeira


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A hora da estrela - A epifania da morte

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré- história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.  Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré- pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor de dentes que perpassa esta histór...

1984 - Vigiar a loucura, punir a arte

Era um dia frio e ensolarado de abril, e os relógios batiam treze horas. Winston Smith, o queixo fincado no peito numa tentativa de fugir ao vento impiedoso, esgueirou-se rápido pelas portas de vidro da Mansão Vitória; não porém com rapidez suficiente para evitar que o acompanhasse uma onda de pó áspero. O saguão cheirava a repolho cozido e a capacho de trapos. Na parede do fundo fora pregado um cartaz colorido, grande demais para exibição interna. Representava apenas uma cara enorme, de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, com espesso bigode preto e traços rústicos mas atraentes. Winston encaminhou-se para a escada. Inútil experimentar o elevador. Raramente funcionava, mesmo no tempo das vacas gordas, e agora a eletricidade era desligada durante o dia. Fazia parte da campanha de economia, preparatória da Semana do ódio. O apartamento ficava no sétimo andar e Winston, que tinha trinta e nove anos e uma variz ulcerada acima do tornozelo direito...

Os Amargurados e Errantes da literatura brasileira

Sem qualquer sombra de dúvida, a literatura brasileira é um dos maiores ícones culturais no contexto tanto nacional quanto mundial. Importando e exportando conceitos, personagens e estilos, ela foi capaz de alimentar a imensa demanda de produção literária das atormentadas mentes presentes na vastidão dessa pequena Terra. E é de um grande personagem da literatura que desejo explorar neste limitado texto. Apesar de não ser tão marcante quanto as “mulatas”, ou dos “burros” e “ignorantes”, arquétipos que, creio eu, são encontrados, juntos com tantos outros, em grande parte das escolas literárias, acredito que sua importância, em muitos casos, suplante a caricatura satírica, provocadora e enfadonha. Refiro-me, no caso, aos errantes amargurados da literatura brasileira. Ao meu ver, um dos personagens mais icônicos e amargurados na literatura é Bentinho Santiago, o Dom Casmurro, de Machado de Assis. O romance, até hoje amplamente debatido por acadêmicos e leitores, trata-se das memór...