Pular para o conteúdo principal

A Morte de Pedro Gonçalves - Parte III

Verônica


Verônica saiu do apartamento agarrando as jóias de diamante. O corredor do edifício era escuro, estreito e emitia um odor desagradável. Sua sombra era projetada na parede pela parca luz que vinha do apartamento de Pedro Gonçalves. 
A noite já havia começado estranha. Todos os dias, exibia seu corpo na esquina da rua de um bar nobre, esperando um cliente rico e bêbado o suficiente para lhe pagar bem e para não lhe dar muito trabalho. E na maioria das vezes, tinha relativo sucesso. Faturava um bom dinheiro com sua carreira de profissional da noite. Muitas das vezes, aliás, se via como a própria personificação da penumbra, como se guardasse em si os segredos e os desejos do crepúsculo.
No entanto, daquela vez, ao invés dos habituais carros de esporte que a vinham buscá-la, um calhambeque, com a lataria caindo aos pedaços, fora ao seu encontro. Era um homem grotesco, fedorento e rude. Verônica tentara se afastar da visão nefasta que a perseguia, até que o homem a alcançara. Conversaram rapidamente. Verônica dissera o quanto iria cobrar dele, aproximadamente o dobro do costume. O homem apenas dera de ombros e mostrou uma quantidade exorbitante de dinheiro.
Quatro horas depois, estava ali, segurando seu dinheiro, dois colares de diamante e buscando uma saída do edifício. Encontrou então as escadas no meio da penumbra.
------------------------
Acordou tarde, com a cabeça girando. O sol já estava se pondo, e as ruas novamente se esvaziavam. Cavalcante sentiu o ar abafado da tarde se espreitar pelas janelas de seu quarto. Sentia uma tremenda enxaqueca, acompanhada de uma terrível dor no estômago. Devia ser fome. Checou o relógio. Já eram quatro horas. O inverno encurtava os dias e acelerava a vida.
Levantou-se e foi à cozinha. Pegou duas latas de cerveja e restos de uma pizza da semana anterior. Comeu calado na escuridão de casa. Lembrava-se aos poucos dos ocorridos da madrugada. Pegou seu celular, que anunciava treze ligações perdidas de Joana e cinco mensagens ameaçadoras de um número desconhecido. Julgou se seria adequado ligar para a mulher. Droga, realmente sentia falta de seu corpo. Mas precisava sair em, no máximo, trinta minutos.
Acessou a internet e digitou Pedro Gonçalves. Várias notícias e críticas apareceram na tela. Nenhuma sobre sua morte. Será que literalmente ninguém se importava com o escritor?
Abriu o primeiro endereço. Era um de seus poemas românticos, acompanhado de uma crítica sagaz e culta, embasada no conhecimento formal e em uma vasta cultura. Enjoou rápido do texto.
O segundo endereço era uma crítica sobre um de seus últimos romances, vinda do mesmo site que havia elogiado tanto seu discurso melodramático. No entanto, dessa vez o autor era descrito como "sórdido", "sujo" e "covarde".
Cavalcante decidiu abrir um de seus novos contos. Falava-se sobre um bêbado cambaleando de um lado para outro por um bar sujo e escuro. A cada passo do bebum, o proprietário ria com um dos serventes. Até que o bêbado parou com sua andança e exclamou: "Onde é o banheiro?!", e o proprietário, aos risos, apontou para uma porta de onde ele tinha acabado de estar. O bebum então resmungou uma reclamação e mijou no meio do salão, para descontentamento de ambos zombeteiros.
E acabava assim.
Cavalcante achou genial.
Quatro e quarenta e cinco. Resolveu ligar para Joana. Ela não atendeu. Deu de ombros, leu mais um conto do morto, pegou suas coisas e foi para a delegacia.
----------------------------
O frio da noite a fazia tremer. Mesmo com o casaco que a encobria, os ventos de inverno pareciam invadir cada íntimo de sua alma. 
Sentia um peso em si. Não sabia exatamente o que era, como se fosse um misto de culpa com preocupação. Mas apesar de tudo, não sabia por que se sentia assim. Apenas sentia. E bastava.
Verônica puxou o capuz do casaco e deixou escapar ar quente de se lábios lívidos e rebuscados. A rua não estava movimentada como de costume. O peso se localizava no peito. Não achava que aguentaria tamanha pressão. Puxou ainda mais o capuz e passou a caminhar em direção a um ponto de táxi. 
Chegou a passar por algumas de suas companheiras de ofício. Mulheres da noite, vítimas da brutalidade da existência. Apenas Verônica parecia sentir gosto na carreira. Sentia-se dona de si mesma. Não dependia do sexo ou dos homens para viver. Era completa em si.
Então, a presença daqueles seres desgraçados deu espaço ao vazio. Ao vazio completo das sombras e das luzes noturnas dos animais nefastos urbanos. Poderia chegar um táxi na próxima esquina. No entanto, subitamente, um indivíduo, ainda mais encoberto pelo crepúsculo e pela atmosfera cálida, surgiu em sua direção.
Os dois caminhavam com passos calculados, respirando soturnamente e carregando segredos. Verônica não reconheceu a feição do rosto, desfigurado pela noite. Uma voz rouca chegou aos ouvidos da mulher. Uma voz abafada, contida, animal. 
As Joias...
Verônica arregalou os olhos, mas continuou andando. Alcançou o ponto. Entrou em um táxi. Partiu.



Fim da Parte III
Texto de Lucas Barreto Teixeira
Baseado nas ilustrações de Oswaldo Goeldi

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O controle de massas pela ignorância

Há diferentes formas pelas quais um autor pode se expressar na literatura. O gênero fantástico, com suas incontáveis vertentes, estabelece uma realidade absurda, seja ela futurista ou mística, improvável ou verossímil, complexa ou simples, de modo com que um problema possa ser abordado de forma mais criativa, dinâmica e elucidativa. Nesse contexto, as distopias foram formadas a partir da percepção política e social de certos autores em relação ao seu tempo, em que governos tiranos cerceiam as liberdades individuais, questionar já não é mais permitido, a a vida se torna fútil e patética. Dentre a vastidão de obras que se apoiam nesse princípio, três clássicos da literatura não apenas definem o gênero como também estabelecem uma série de correlações entre eles, criando uma vasta e complexa crítica à sociedade de nossos tempos. Da esquerda para a direita, Aldous Huxley, Ray Bradbury e George Orwell, respectivamente autores de "Admirável Mundo Novo", Fahrenheit 451" e ...

A hora da estrela - A epifania da morte

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré- história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.  Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré- pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor de dentes que perpassa esta histór...

Irmão do Jorel - Um contraste existencial

"Queria apenas tentar viver aquilo que brotava espontaneamente em mim. Por que isso me era tão difícil?"  Essas palavras, encontradas logo no início do romance " Demian ", de Herman Hesse, ilustram, com exatidão, a premissa principal da animação nacional "Irmão do Jorel". Passando-se em uma cidade pacata do Brasil, o desenho retrata a infância de irmão do Jorel, um garoto que, apesar de sua criatividade e sua originalidade, vive sempre à sombra de seu irmão, Jorel, um adolescente popular, galanteador e verdadeiro ídolo dos habitantes locais. Vivendo assim, incapaz de impor sua personalidade, sendo conhecido apenas por sua relação familiar e não por sua individualidade, irmão do Jorel tenta lidar com suas frustrações, seus anseios e suas angústias. Apesar de ser um desenho infantil, "irmão do Jorel" é uma obra repleta de simbologias, metáforas e interpretações socioculturais da realidade brasileira. A organização militar, retratada por p...