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A Morte de Pedro Gonçalves - Parte IV

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Cavalcante


Cavalcante encontrou na delegacia um Ernesto velho e cansado.
O delegado, que anteriormente havia o substituído, roncava apoiado na mesa da sala. Cavalcante entrou e acordou gentilmente seu amigo. Trocaram parcas palavras e se despediram.
Sentou-se na cadeira do escritório e verificou as atualizações do dia. Denúncias de assalto, negligência policial, abusos familiares... nada de novo no front. Resolveu ligar para Sílvia. Queria saber sobre o caso de Gonçalves.
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Sílvia e Fernando passaram o dia investigando sobre a vítima. Apesar de apenas suspeitar da identidade e não conseguir encontrar ninguém que pudesse comprová-la, a digital do polegar direito bateu com a ficha criminal de Pedro Gonçalves, preso algumas vezes durante a noite por ter ameaçado alguém após ter exagerado na bebida.
A dupla separou as tarefas para cada um poder descansar minimamente. Fernando acompanhou o processo jurídico e legista para reconhecimento de corpo. As fotos encontradas na internet não pareciam bater com aquele sujeito. Todas as fotos tiradas para reportagens e livros remetiam a um Pedro Gonçalves de anos atrás, com olhar atraente e com um sorriso esbelto no rosto. O que teria acontecido com ele?
Após a finalização de todo processo legal, Sílvia investigou sobre o passado do homem. Procurou documentos, relatos, notícias e textos acadêmicos para estabelecer alguma relação com seu assassinato. Enquanto concluía o dossiê, recebeu a ligação de Cavalcante.
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Falaram-se rapidamente. Sílvia havia descoberto algumas conexões interessantes entre a vida de Pedro Gonçalves e sua obra. 
O escritor fizera sua fama com textos românticos e possuía relativa fama com as mulheres no passado. Fora condecorado na Academia de Letras e recebera diversos prêmios por suas obras, tendo algumas delas traduzidas para até sete idiomas.
Cinco anos antes de sua morte, no entanto, ele sofrera um terrível acidente. Dirigia de noite, influenciado por bebidas alcoólicas, com uma jovem lhe fazendo companhia, quando colidiu contra um outro veículo. Por um milagre, Gonçalves conseguiu se arrastar para fora do veículo antes de explodir. A família da moça não teve nem um corpo para enterrar.
Depois do acidente, largou o academicismo para escrever sobre o submundo das cidades, baseando-se em suas experiências com bebuns e prostitutas.
Após a ligação, Cavalcante esperou um tempo no escuro da sala para refletir sobre a vida desse homem. Depois, puxou uma pilha interminável de documentos e começou a analisar os processos de seu turno. E assim foram passando as horas, em papel por papel e papel...
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Joana acordou de madrugada com um som estranho na cozinha.
Rapidamente, cobriu-se com os lençóis que a protegiam do frio da noite. A janela do quarto estava aberta. Esforçou-se, mas conseguiu se lembrar que a fechara antes de se deitar. Quanto mais se acostumava com a escuridão, conseguia ter uma noção melhor do ambiente. A janela não estava aberta. Estava quebrada. Os cacos de vidro estavam espalhados pelo chão de seu quarto.
Em um salto, acendeu a luz do abajur em cima da cabeceira da cama. Tremia de medo e horror. Procurou seu celular, fez a ligação e foi se esconder no armário.
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Os pensamentos oníricos do delegado se transformavam em imagens voláteis em sua cabeça. Imaginava os bêbados e as prostitutas de Gonçalves. Conseguia ver a explosão do carro. o acidente, o desespero, as lágrimas. E, além de tudo, via o rodopiar do fogo. O fogo antes elegante que destrutivo. Antes ardente que malicioso. Libertador em sua capacidade mortífera.
Cavalcante recebeu a ligação de Joana sonolento e dormitando. Os processos pareciam estar sugando sua alma. Entretanto, ao sentir a insegurança em sua voz, o experiente delegado percebeu que se tratava de algo sério.
Correu com seu carro até o apartamento da mulher, tentando ao máximo reconfortá-la pelo celular. A tecnologia, contudo, não parecia apaziguar em nada seu desespero. Acelerou ainda mais.
No edifício de Joana, não se precipitou em nada. Nunca deixaria sua estrutura ser abalada por qualquer resquício sentimental. Seus movimentos eram calculados por uma perspicácia fria e cruel.
Avançou pelos lances de escada com calma, a arma à frente do corpo, braços estirados, costas sempre cobertas. Foi subindo: primeiro andar, segundo andar, terceiro andar.
Checou o corredor. As luzes automáticas se acenderam. Vinha vindo alguém. Escondeu-se na saída das escadas. Ouviu um som metálico, identificando-o como a vinda de algum morador pelo elevador. Checou o relógio de pulso. Uma e vinte e sete. A porta do elevado se abriu. Viu passando uma mulher coberta por roupas de frio, com o semblante oculto pela sua própria solidão. Andava trêmula. Pegou as chaves. Entrou em um apartamento.
Cavalcante continuou com passos curtos. A tensão se dissipava em seu corpo, percorrendo cada um de seus músculos. A arma era pressionada firme em suas mãos. Chegou na porta do apartamento de Joana. Sabia da chave embaixo do carpete. Abaixou-se. Moveu o tapete de boas-vindas. Pegou a chave. Abriu a porta.
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Verônica desabou em sua cama ao chegar à casa. Uma pressão forte em seu peito lhe sufocava. 
O apartamento estava infestado pela penumbra, apesar de ter suas formas reconhecíveis. A mobília fina e nobre decorava cada canto dos cômodos. Por um tempo, permaneceu deitada, sorvendo o ar frio que se espreitava da cidade de becos e vagabundos. Pensava no ocorrido de algumas horas atrás. Tentava reconstruir a feição do ser que havia lhe abordado. Quem poderia ter sido? 
Esticou seus braços em direção de uma bancada perto da cama e pegou os colares de diamante. Como ele saberia disso?
Ficou balançando os pingentes, como uma brincadeira, uma distração boba, infantil. Não notou as inscrições no centro deles. Dormiu pouco tempo depois.
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Abriu a porta sorrateiramente. Permitiu deixar a luz do corredor penetrar o e encher s sala principal. Com um rápido desviar de olhos, notou um notebook ligado no centro da mesa no centro. E Cavalcante bem sabia que Joana não gostava de deixar seus aparelhos eletrodomésticos ligados.
Avançou devagar contra a escuridão do apartamento, procurando sempre espaços para se acobertar e ter sempre relativa vantagem em um possível combate. Passou da sala para os cômodos conexos. Cozinha, banheiro, quarto. Não teve pista de nenhuma presença ali. Cavalcante guardou a arma e abriu o armário. Joana saiu saltando para os braços do delegado, em lágrimas e com o medo em seu rosto.
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Cavalcante achou de bom grado passar a noite com Joana. Ligou para Fernando e Sílvia e conseguiu se desvencilhar dos documentos daquele turno.
A mulher dormia como um animal grotesco esparramada pela cama. O homem, por outro lado, sentia-se disperso por conta da adrenalina. E ainda tinha de descobrir quem fizera tudo aquilo a ela.
Checou seu celular. Viu as mensagens ameaçadoras que recebera pela amanhã. Não notou nada de extraordinário.
Foi até a cozinha pegar uma bebida. Pegou uma lata de cerveja, voltou para a sala, e sentou-se defronte ao notebook. Na tela, uma mensagem inscrita.
Cavalcante virou todo o conteúdo da garrafa e sentiu a náusea do álcool lhe consumir. Ouviu a voz de Joana lhe chamando. Foi até ela. "Diga que me ama", dizia, e Cavalcante contentou-se em responder que a amava.


Fim da Parte IV
Texto de Lucas Barreto Teixeira
Baseado nas ilustrações de Oswaldo Goeldi

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