Pular para o conteúdo principal

Todo o Tempo do Mundo e a Felicidade Genuína

A felicidade é uma temática recorrente em debates artísticos e filosóficos. Desde os primórdios da sociedade ocidental, a busca por sua compreensão foi alvo de discussões e importantes ideias para a estruturação do nosso modelo social vigente. Entretanto, poucos são aqueles capazes de responder a emblemática pergunta: "O que é verdade genuína?"; questionamento central no novo romance de Maurício Gomyde.

Maurício Gomyde foi finalista do prêmio Jabuti com sua obra "Surpreendente!", além de ser o autor de "A máquina de contar histórias".
Em "Todo o Tempo do Mundo", o autor escreve a história de Vitor e Amanda, com suas perspectivas alternadas durante a narrativa. Os dois, quando jovens, apaixonaram-se após um simbólico beijo na festa de formatura. Um ano após o evento, porém, os pais de Amanda são mortos por um atentado no Quênia, dando à Vitor a percepção de que a menina falecera. Vinte anos depois, Vitor, que desde o fatídico dia desenvolvera uma estranha peculiaridade, esconde-se na produção de espumantes, ao Sul do país, tentando superar as marcas de Amanda. No entanto, após encontrá-la viva em uma festa de reencontro dos colegas de classe, os dois passam a tentar superar seus traumas e seus passados em uma história de amor.
O grande diferencial do romance, além da troca de perspectiva em diversos trechos essenciais à narrativa, estruturadas por uma linguagem cinematográfica e dinâmica, é a habilidade de Vitor. Aparentemente, após beijar Amanda na juventude, sempre quando experimenta felicidade, ele salta ao passado para viver o momento mais uma vez. Contudo, ao experimentar tristeza, Vitor salta ao futuro, como se pudesse passar por todas as situações que assolassem seu coração.
A partir de então, Vitor rotula seus níveis de felicidade e tristeza com base na quantidade de tempo que retrocede ou avança na linha do espaço-tempo, descrevendo todas suas experiências em um caderno. Além disso, ao tentar compreender o evento inexplicável, passa a tentar compreender a felicidade genuína, ouvindo as diversas opiniões existentes sobre o assunto.
Foi Epicuro um dos primeiros pensadores a chegar em uma conclusão sobre o tema. Para o pensador grego, a felicidade era um estado de espírito, alcançável apenas quando se distancia de todos os causadores de males e desgraças.

Epicuro de Samos (341 a.C. - 270 a.C.)
O pensamento epicurista é facilmente reconhecível na postura de Vitor de tentar se esconder e permanecer isolado em uma terra erma e pacata. Uma vez sem ter que se preocupar com o fantasma da memória de Amanda, que continuava com ele, em Brasília, pode por fim se permitir mínimo descanso. Entretanto, apesar de seguir os conselhos de Epicuro, Vitor sabe, por não voltar regularmente ao tempo, que ele não está sendo minimamente feliz.
Isso ocorre porque, ao tentar estabelecer regras para o sentimento, pressupõe-se que há um mínimo e um máximo para sentir, sendo medida sempre por um relógio inteligente, que revela o batimento cardíaco de Vitor. Tendo a capacidade de medir sua felicidade, Vitor logo assume que não estava tendo dias muito felizes, contrariando Epicuro e sua certeza absoluta por felicidade.
No entanto, talvez seja o fato de poder medir sua felicidade que faça Vitor pensar que não está sendo feliz. Aristóteles, outro pensador grego, ao refletir sobre o tema, concluiu que, por ser a felicidade o objetivo final de toda existência, um homem só poderá dizer-se feliz ao fim da vida. Logo, por conta de suas viagens pelo tempo, Vitor não consegue traçar uma linearidade em seu propósito.
Por outro lado, Amanda ocupa uma direção metafísica contrária a de Vitor. Após ter se casado com um deputado argentino possessivo e abusivo, Amanda sofre de agressão física, moral e psicológica. O cenário caótico no âmbito familiar não impede, no entanto, a busca por uma zona de conforto, epicurista e isolada. Ocupando seu tempo com o emprego em uma livraria, a personagem vive alheia a seus problemas, buscando respostas naquilo que chama de "biscoito chinês da sorte literário", que consta em ler a primeira frase de um livro qualquer antes de voltar a casa.
Contudo, uma dessas citações implica em outra vertente filosófica da felicidade:

"Se eu posso explicar por que queria me jogar do alto de um prédio?"

As palavras de Nick Hornby se conectam com a ideia de suicídio desenvolvida por Amanda após um episódio severo de violência doméstica. Apesar de trágica, a ideia já foi vista como solução outras vezes no campo literário, como uma escapatória da angústia da existência. Os maiores exemplos que posso citar se tratam do fim trágico de Werther e Emma Bovary. Respectivamente, o personagem de Goethe, após perceber a impossibilidade de seu amor, decide atirar em sua própria cabeça, enquanto que, a personagem de Flaubert, após perceber o estado crítico de sua vida por conta de suas decisões pautadas pelo luxo, ingere uma grande quantidade de um produto químico para dar fim a seus delírios insanos. Entretanto, em ambos os casos as personagens agonizam por horas antes de morrer; o primeiro definhando de uma paixão devastadora; e a segunda por uma tortura física e moral.


Sendo assim, a pergunta de Vitor permanece em aberto. O que é, afinal, verdade genuína? Sendo o isolacionismo falho, a teleologia aristotélica driblada, e o fim trágico inviável, o que mais resta como certeza? Talvez, então, a felicidade seja impossível enquanto se busca seu sentido. Afinal, com a impossibilidade se se medir a felicidade, Vitor não poderia saber que era infeliz e pressupor que alcançara sim o estado relatado por Epicuro. E sem o pensamento lógico e sem o peso das consequências, o suicídio poderia sim reconfortar o espírito inquieto de Amanda, Todavia, como é natural do ser humano de tentar anteceder seu fim, e buscar sempre formas de alterar os rumos de seu futuro, buscando a felicidade como um fim aristotélico, a angústia por resultados imediatos impossibilita a felicidade. Essa conclusão, aliás, pode ser vista pelo amigo de Vitor, o Rico, um proprietário de uma lanchonete que, por ignorar obrigações civis e até o rigor acadêmico e intelectual, atribuindo frases e pensamentos a autores diferentes, pode ser considerado o único personagem genuinamente feliz do romance de Gomyde.
Logo, a felicidade é alcançada apenas por aqueles que não refletem nela. Vitor chega em percepção parecida ao fim do romance, quando decide apenas parar de pensar sobre o enunciado. Não tendo uma resposta objetiva, o tema se torna alvo de angústias, mas se for ignorado, é facilmente alcançado. E é esse paradoxo que, como muito bem trabalhado no novo romance de Maurício Gomyde, revela-se como verdadeira razão inalcançável humana.

Texto de Lucas Barreto Teixeira  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O controle de massas pela ignorância

Há diferentes formas pelas quais um autor pode se expressar na literatura. O gênero fantástico, com suas incontáveis vertentes, estabelece uma realidade absurda, seja ela futurista ou mística, improvável ou verossímil, complexa ou simples, de modo com que um problema possa ser abordado de forma mais criativa, dinâmica e elucidativa. Nesse contexto, as distopias foram formadas a partir da percepção política e social de certos autores em relação ao seu tempo, em que governos tiranos cerceiam as liberdades individuais, questionar já não é mais permitido, a a vida se torna fútil e patética. Dentre a vastidão de obras que se apoiam nesse princípio, três clássicos da literatura não apenas definem o gênero como também estabelecem uma série de correlações entre eles, criando uma vasta e complexa crítica à sociedade de nossos tempos. Da esquerda para a direita, Aldous Huxley, Ray Bradbury e George Orwell, respectivamente autores de "Admirável Mundo Novo", Fahrenheit 451" e ...

A hora da estrela - A epifania da morte

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré- história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.  Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré- pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor de dentes que perpassa esta histór...

O desapego da moral em Bukowski

“ -Que vai fazer agora? - Perguntou Sarah. - Sobre o quê? - Quer dizer, o filme acabou mesmo. - Oh, sim. - Que vai fazer? - Tem os cavalinhos. - Além dos cavalinhos? - Oh, diabos, vou escrever um romance sobre como se escreve um argumento e se faz um filme. - Claro, acho que você pode fazer isso. - Acho que posso. - Como vai se chamar? - Hollywood . - Hollywood ? - Ééé... E é isso aí.” Caracterizar Charles Bukowski como um velho bêbado louco é eufemismo. O alemão, naturalizado americano, é um dos maiores expoentes da literatura de seu tempo, além de ilustrar a realidade de sua época com crueldade atroz. A sociedade em Bukowski é hipócrita e suja, imoral e desigual. Mas, apesar de toda dimensão artística e crítica atribuída ao autor, não são esses elementos os almejados por ele. Charles Bukowski (1920-1994) A narrativa de Charles Bukowsi é norteada por sua própria vida. Por meio de seu alter-ego Henry Chinasky, que protagoniza a maior parte de seus livros, o aut...