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Machado para adolescentes

 Machado de Assis dispensa apresentações. Escritor, crítico e fundador da Academia Brasileira de Letras, é sem sombra de dúvidas um dos maiores - se não o maior - nomes da literatura nacional. Sua influência, inclusive, não está presa a seu tempo histórico e em seu território, sendo descoberto e redescoberto até hoje em diversos países. Seu realismo irônico particular, seus contos ácidos, seus livros icônicos e sua convicção política pautaram discussões sociais e literárias por anos a fim, tornando-se um símbolo presente nos sistemas curriculares da educação de todo o país. Com todo seu peso histórico, seu nome virou pauta no Twitter em um sábado, dia 23 de janeiro de 2021, quando influenciadores disseram que: "forçar adolescentes a lerem romantismo e realismo brasileiro é um desserviço das escolas para a literatura. Álvares de Azevedo e Machado de Assis não são para adolescentes! E forçar isso gera jovens que acham literatura um saco"; criando uma enorme discussão nas redes sociais acerca do papel do ensino literário nas escolas.

Acesse aqui a estampa, a HQ e o Mangá da imagem.

A discussão resultante de tais comentários foi explosiva, como toda discussão de internet, com argumentos de carácteres limitados e muitos achismos. Confesso que eu mesmo, tomado pelo calor do momento, tecei meus comentários com plena indignação do acontecido. Em todo o caso, achei por bem escrever alguns de meus pensamentos no blog, sem limites de carácteres e com espaço para certa reflexão.

 Nesse sentido, primeiro gostaria de definir o teor do presente texto. Sem dúvidas, o modelo educacional enquanto um todo deve ser revisto, e não há dúvidas quanto a isso. Professores com remuneração insuficiente, alunos sem incentivo a comparecerem a aulas, a mentalidade fatalista do vestibular, gerando ansiedade extrema a jovens que devem definir a vida inteira após passarem por matérias que prezam a "decoreba" ao invés do aprendizado... esses são apenas alguns dos vários elementos que precarizam o ensino em geral. Entretanto, tais comentários estão vinculados a um elemento em particular: o descaso quanto o ensino das humanidades, como geral, nas escolas. Não é de agora que o ENEM, principal exame de vestibular do Brasil, deliberadamente ignora questões de história, literatura, filosofia e sociologia para elaborar uma geração que não encontra valor em tais matérias, visto que tal valor é agregado ao tempo de estudo que um aluno passa estudando determinado tema. Claro que defender uma prova conteudista para valorizar tais matérias é, por si só, uma atitude problemática, mas no contexto da situação sociopolítica brasileira isso se revela como um ataque direto às matérias de humanas, que visam conscientizar e politizar jovens.

Quando tais pontos são levantados, encarar a matéria de literatura como um instrumento para fazer jovens desenvolverem gosto pela leitura se revela como uma atitude inteiramente problemática. Se esse fosse o caso, poder-se-ia argumentar que aulas de matemática poderiam se transformar em aulas de Sudoku e aulas de física poderiam vir a ser aulas de montagem de Lego. Autores como Machado, Aluíso Azevedo, Maria Firmino dos Reis e Castro Alves são, além de excelentes escritores, marcos na história cultural do país e símbolos políticos (no caso, todos citados são nomes vinculados à luta antiescravista e racial do país). É por razão semelhante que José de Alencar e Euclides da Cunha também devem compor o currículo, por serem obras datadas e que servem como forma de desconstruir preconceitos e visões de mundo. A educação, segundo Paulo Freire, deve ser libertadora, e não há nada mais libertador do que conhecer suas raízes para, por fim, entender-se enquanto ser.

 Até aqui, então, discorri de forma genérica como a educação pode ser compreendida em tal debate. No entanto, por se tratar de um tema muito complexo e com muitas vertentes, espero ter demonstrado de forma geral o papel do ensino literário nas escolas. O que ainda há a se dizer (e como há a se dizer) é a relação feita por influenciadores de que Machado e demais nomes da literatura dita clássica não seriam para adolescentes. E este é, sem dúvidas o ponto que mais me incomoda.

Apenas por uma questão prática, vou simplificar o comentário a apenas um nome: Machado de Assis. Como busquei demonstrar em minha introdução, não acho que exista sombra de dúvidas quanto à excelência técnica do autor. Tanto o é, na verdade, que o primeiro texto escrito aqui no blog foi sobre seu conto mais icônico, O Alienista, que me fascina desde que vi uma peça gratuita em um evento literário infantil, quando tinha cerca de dez a doze anos. Pois é, não conheci Machado na adolescência, mas sim na infância, por estímulo de minha mãe (responsável direta pela minha paixão pela literatura, responsabilidade para além do campo de trabalho de professores), que me levava a feiras espalhadas pelo Rio de Janeiro e, sempre que possível, inundava-me com livros. Mas, é claro, falar de experiências pessoais é limitadora e não acrescentaria muito ao debate. Claro que poderia falar do encanto e fascínio de jovens de escolas públicas e privadas correndo pelos corredores de bienais do livro, carregando sacolas com Harry Potter e Dom Casmurro, lendo livros de autores presentes nas feiras vestindo frases de Memórias Póstumas. Mas isso não parece ser interessante aos defensores da tese.

Estou querendo dizer que quem acha Machado incompatível com adolescentes geralmente é um adulto pedante que considera jovens incapazes de entender conceitos ultra complexos como ironia e humor? Com certeza. Não é à toa que Machado é quem é. Seus livros são atemporais, com personagens e narrativas complexas e que causam fascínio ao leitor. Machado escrevia sobre tudo, desde um morto narrando suas próprias memórias até a um transeunte que não percebeu a queda da monarquia por conta do teor elitista da instalação da república. Escreve sobre objetos inanimados e sobre homens mesquinhos. Escravidão e loucura. Machado era um gênio, com escrita acessível e sensível com a realidade. Dizer o contrário é apenas uma forma de se destacar do "resto", colocando-se enquanto superior.

É claro, e não deveria existir sequer a necessidade de se dizer algo assim, pessoas devem ler qualquer que seja o texto. Camões e românticos portugueses têm a escrita complicada envelhecida? Claro. Goethe parece complicar demais suas cenas? Sem dúvidas. Dostoiévski e Clarice Lispector passam muito tempo descrevendo os pensamentos de seus personagens? Oh, se passam... Mas, ainda assim, são esses elementos que os fazem únicos, especiais e atemporais. Não é uma questão de idade que define se alguém é apto ou não a ler. Para o pesar de tais influenciadores, e para a alegria geral da literatura, Machado é e sempre será eterno.


Texto de Lucas Barreto Teixeira

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