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Astral Chain é uma joia perdida no deserto

 Em 2019, em seu lançamento, Astral Chain foi recebido de forma modesta pelo público. Tendo vendido pouco mais de um milhão de unidades mundo afora, o novo jogo da companhia Platinum Games certamente atraiu seus fãs, mas permaneceu fora dos radares com tantos novos anúncios do período. No entanto, após um ano e meio de seu lançamento, por fim consegui colocar as mãos nele... e sou incapaz de tirá-lo da cabeça desde então. Astral Chain é uma joia perdida em um deserto, e são vários os motivos para a obra ser tão boa.


Cyberpunk está em alta esses dias. Muitos lamentam o desastroso lançamento do aguardado Cyberpunk 2077 e outros discutem sobre a natureza das narrativas do gênero. No entanto, apenas com Astral Chain consegui me lembrar o que me agrada tanto em tais narrativas. Afinal de contas, não basta iluminar um cenário abandonado com neon para definir-se em tal estética. Em Akira e Gosth in the Shell, a arte e o traço servem apenas de pano de fundo para a história, sempre servindo enquanto paralelo de certa realidade socioeconômica. Da mesma forma, não fosse as brilhantes discussões colocadas em Blade Runner, o filme seria lembrado apenas como um longa monótono e arrastado, sem qualquer valor. Escrever Cyberpunk é usar a estética para dizer algo, e se isso não era claro o suficiente, o jogo faz questão de demonstrar.

Em um futuro apocalíptico onde seres de outra dimensão invadiram o planeta, e a humanidade vê a última esperança em uma arca, construída para escapar dos ataques extradimensionais. Então, o cientista Yoseph organiza uma equipe tática para usar os seres cósmicos (quimeras) contra eles mesmos, aprisionados em armaduras e acorrentados (legiões). De início, somos apresentados aos dois filhos adotivos de Max Howard, o capitão de tal equipe (Neuron), que são convocados por Yoseph a compor o time policial. À primeira vista, o jogo não dá indícios de apresentar uma trama complexa, disfarçando-a em uma jornada estética incrível, com uma trilha sonora impecável, cenários detalhados e mecânicas de combate inventivas e confortáveis de serem exploradas. Então, o que vem a seguir se revela uma grande surpresa a desavisados... (Alerta de Spoilers! Vou resumir a história geral para depois falar de seus temas...)

Astral Chain abandona esse manto de superficialidade tão logo é possível dar prosseguimento à trama. Na base especial de Neuron, já é possível encontrar pistas das verdadeiras intenções de Yoseph, e quem controla os personagens já espera encontrar algo de errado com a polícia da Arca. De princípio, a obra toma seu tempo dando a impressão de que os serviços de segurança pública são justificados, usando as armas para destruir monstros e auxiliando civis. Contudo, em meio a uma missão que leva a equipe para a dimensão dos invasores, algo terrível se desenrola. As legiões se libertam das correntes, passando a atacar seus antigos portadores, resultando na morte de Max e no desaparecimento das armas, com a exceção à pertencente aos protagonistas. Ignorando o luto, Yoseph enxerga o potencial de usar tal poder para ter vantagem em um projeto misterioso.

Antes de poder processar qualquer informação, encontramos Jena Anderson, antiga parceira de Yoseph, agora classificada como terrorista por um ataque contra os laboratórios de produção de legiões. Tão logo é possível, somos convocados a caçá-la, e a encontramos usando os portais interdimensionais a seu bel prazer, com o auxílio de criaturas artificiais (homúnculos), que se alimentam da energia dos invasores. No primeiro conflito, entretanto, a antagonista fornece informações secretas ao jogador, que poderiam revelar uma grande conspiração. Em seguida, um dos irmãos da dupla de protagonistas sofre um ferimento grave, e Jena escapa.

A grande virada da narrativa se dá a partir desse momento. Desamparado, procuramos por respostas, saindo dos cenários luxuosos das cidades grandes e povoadas, para mergulhar em um setor abandonado pelos governantes, imerso na miséria e na doença. As informações de Jena nos levam até o Setor 9, que por ter sido duramente afetado por um surto de doenças resultante dos choques de dimensões foi isolada e posta de quarentena, fechada para toda a Arca, tornando-se invisível. É a clássica teoria de Artaud, de eliminar as mazelas sociais ao afastar os excluídos do modelo econômico vigente dos olhos da massa social, chamando-os de doentes. Sem auxílio estatal e vigilância policial, a área foi dominada por um grupo de hackers, os eremitas, que se fortaleceram roubando os ricos de outros setores e agora pretendem derrubar a muralha da quarentena.

De herói social a agente das disparidades de classe. De herói a vilão. A descida se dá em passos graduais, até revelar as favelas criadas por conta do descaso dos que juraram servir e proteger. Mesmo os eremitas, que a princípio se mostram como perigosos, mostram-se meras vítimas da situação, mas que buscam revertê-la para o bem coletivo. Aqui, a obra apenas questiona: se não servimos ao povo, a quem servimos?

Não demora para encontrarmos uma resposta. Jena solta cada vez mais homúnculos pelas ruas, destruindo cada vez mais legiões e colocando cada vez mais vidas em risco. É apenas no confronto final em que entendemos que sua motivação gira em torno de evitar, a todo custo, os planos de Yoseph. Após curar o ferimento fatal do protagonista moribundo, usa-o de escudo, observando o combate contra Jena se desenrolar até as legiões se fundirem com o corpo físico de seu algoz. Nesse instante, Yoseph revela sua equipe secreta, constituídas de clones do protagonista antes ferido, multiplicando o arsenal de legião e anulando temporariamente a ameaça imposta pela fusão.

A obra termina em um combate dos irmãos contra o cientista, no laboratório onde os clones estavam sendo fabricados em conjunto com novas legiões, causando uma reflexão metafísica a respeito de ser e individualidade. Mas já vamos a isso. No fim, Yoseph usa seus clones para criar diversas fusões, já que são ativadas quando o corpo do portador está debilitado, e as usou para criar uma quimera colossal, capaz de fazer a humanidade evoluir, unindo-a em um só campo senciente. Para derrotá-lo, os irmãos unem forças para atacá-lo no campo físico e astral, resultando no sacrifício final de um dos protagonistas para colocar um fim a todos os esforços do vilão.



O resumo pode ter ficado longo, mas acho que vale à pena. Afinal, gostaria de falar mais a fundo de seus temas, e acho difícil muitas pessoas terem-no jogado. Em todo o caso, apenas um aviso: caso o texto tenha convencido a experimentar a obra, há muito mais para ser descoberto. Deixei de lado vários personagens interessantes e momentos dramáticos que fazem tudo valer à pena, então não deixe de conferir.

Mas agora vamos para o tópico central do presente texto. Por que considero Astral Chain uma obra tão especial quando colocada ao lado de várias outras de propostas semelhantes? Simples: há muito tempo não há algo como Astral Chain. Posso me referir a todos os méritos estéticos do jogo, é claro, mas dessa vez falo especificamente da narrativa. Toda a vez que os clássicos do Cyberpunk são referenciados, suas temáticas são enterradas para entregar apenas o básico, esquecendo do propósito de tudo aquilo. Além disso, há algo de novo com a abordagem, já que os problemas das narrativas do gênero frequentemente são as causas da desolação da sociedade, enquanto aqui a perspectiva de tais problemáticas se dá em um viés de inevitabilidade.

Antes, apontei como o jogo deseja passar a sensação de que é possível fazer o bem dentro da polícia. Isso é apenas possível com Marie, uma agente ingênua e alegre, intrinsicamente gentil, que circula pela delegacia e pelas ruas fantasiada de Larry, um mascote criado para trazer felicidade aos civis e a oficiais. Suas missões são agradáveis e sempre seguindo esse sentido, até se ver rebaixada por não servir aos propósitos do Neuron. Afinal de contas, as forças especiais foram usadas para exterminar e controlar, não para causar conforto e bem-estar. A polícia é violência, não segurança. Não que isso seja algo de novo - nem de longe -, mas há sim uma grande diferença no retrato das forças policiais. É muito comum vermos a polícia como esse instrumento de força, o monopólio da violência de um Estado interessado em proteger sua elite, e é de tal truculência que as disparidades sociais são garantidas. Em Astral Chain, contudo, há um verdadeiro motivo para tais forças existirem. Há um verdadeiro propósito para a segurança pública ser consolidada. Mesmo assim, o monopólio da violência de forma inevitável cria essa relação social abusiva e destruidora, por servir sempre ao indivíduo ao invés do social de fato. Não é à toa que todos os avanços tecnológicos desse cenário só foram possíveis com a criação das novas armas.
Além da questão social, Astral Chain mergulha na filosofia tão solicitada pelo gênero. Ao ver salões recheados de clones, a única pergunta articulada possível é realizada: "eu sou eu?" A questão de identidade é muito bem trabalhada nas cenas finais, ainda mais com a motivação final de Yoseph: é necessário evoluir a espécie. Evoluir de que forma? Será que o vilão de fato pensava no coletivo? No final das contas, suas ambições eram meramente individualistas e pautadas em um senso particular, até porque não sofreu com seus excessos. Em uma sociedade onde membros marginalizados são literalmente excluídos dos ambientes mais ricos, a evolução de Yoseph visa apenas a si mesmo. Dessa forma, a dúvida criada nesse momento também extrapola a si mesmo. Afinal, ser o original ou não pouco importa quando todos compartilham dos mesmos desejos e anseios. Questionar essa individualidade não faz muito mais sentido, já que o coletivo se comporta enquanto unidade.


Olha, faz tempo que não me empolgo tanto com uma obra Cyberpunk. E analisar Astral Chain ao lado de obras pregressas apenas confirma minhas certezas de que não basta a estética pele estética. Gêneros são estabelecidos a partir de diversos pontos que apenas em conjunto eles conseguem funcionar. E fico muito feliz que o jogo tenha sido capaz de entender essa relação. Eu não tenho dúvidas que é uma joia no deserto, mas agora precisamos achar outras joias!

Texto de Lucas Barreto Teixeira



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