A idealização de espaços é um tema recorrente no imaginário social. Quando pensamos em crenças, literaturas e epistemologias ao redor do globo, encontramos, recorrentemente, a personificação de valores e ideais de uma sociedade, de um grupo de pensadores, ou até mesmo perspectivas individuais a respeito de uma sociedade em geral. De acordo, habitualmente atribuímos a criação de utopias a livros e tratados, seja a República de Platão, o Autoritarismo de Hobbes ou a própria utopia de Thomas More, como se a criação de utopias fosse exclusivo a um modelo de pensamento eurocêntrico, pautado pela razão helênica e muitas das vezes profundamente cristã. No entanto, é difícil não enxergar em tal limitação teórica a exclusão de outras formas de idealização política, silenciando vozes e contribuindo a um modelo social desesperançoso e injusto.
Construir uma utopia é elaborar um projeto político. É imaginar um espaço fictício onde indivíduos se tornam ferramentas para a sustentação desse mesmo ambiente, partindo do pressuposto que ninguém poderia se opor a tal estrutura. É, de certa forma, um ato de ingenuidade, ou um campo de possibilidades onde é possível discutir a respeito do comportamento social, a organização econômica e a distribuição de poderes. A construção de utopias é, além de tudo, necessário. E não é proposital a construção da relação de utopias com elites.
Sempre há um ponto de partida em comum nas obras que abordam tal tema: a elaboração de um indivíduo resultante de todos os valores virtuosos e idealizados pelo autor. Afinal, a sociedade perfeita só é possível por meio da dominação das massas pelos indivíduos perfeitos. No entanto, a criação de tais heróis não é exclusiva das sociedades europeias. Crenças e religiões das mais diversas sociedades apontam para um sistema de valores que culmina na gênese de arquétipos específicos que servem como espelhamento aos indivíduos que são convidados a entrar em contato com tais narrativas. Dessa forma, delegar a pensadores ocidentais a exclusividade da criação de utopias é silenciar valores, culturas e saberes que vão diretamente ao encontro da manutenção do poder das já existentes elites.
Nesse contexto, é interessante analisar obras que se propõe a desconstruir tais Utopias. A criação do gênero Cyberpunk, por exemplo, se dá por meio de uma troca de perspectiva dentro dessas sociedades idealizadas e aparentemente perfeitas. Dando voz a personagens marginalizados, obras distópicas apresentam leituras sociais consequencialistas, imaginando o futuro catastrófico que o sistema homogêneo pode causar.
A distopia, assim como a utopia, é um exagero, uma ficção para se questionar a respeito dos valores propagados e das consequências de nossos atos políticos. E é fácil entender como o gênero ganha cada vez mais e mais força com o passar do tempo, afinal, muito mais indivíduos se enxergam no papel dos marginalizados do que no dos poderosos, e por tal razão, criar distopias é uma forma de ocupar o espaço tomado na criação de utopias. Entretanto, há um fenômeno curioso ao redor do gênero. Nascendo enquanto crítica ao sistema homogêneo, cada vez mais as distopias parecem estar sendo absorvidas pela elite, revertendo tais narrativas em glamourização do mesmo sistema.
É o que acontece, por exemplo, com a obra de Orwell, criado enquanto crítica de uma sociedade totalitária que hoje é usada de forma vazia por membros de uma direita incapaz de enxergar que são controlados por um sistema para odiarem seus opositores assim como o fazia o grande irmão. Ou Houxley, que de sua previsão pessimista em Admirável Mundo Novo acertou na alienação pelos estímulos de um falso prazer estimulados pelo capital. No Cyberpunk, a crítica contra megacorporações e provocações humanistas em relação a inteligência artificial resultou em megacorporações do entretenimento explorando a estética para o máximo lucro, ignorando todos comentários políticos para entregar produtos venerando violência gratuita e ódio contra agentes do crime, transformando questões de banditismo social, miséria e sentimentos de revolta em uma cruzada moralizante. Tudo isso resulta na criação de um público ignorante da obra que consome, o que foi colocado em prática quando membros da extrema direita resolveram sabotar o Hugo Awards, maior prêmio de ficção científica, para esvaziá-lo da literatura crítica.
Criar e desconstruir utopias, portanto, é um espaço a ser ocupado. Deixar tal luxo nas mãos de uma elite é uma violência em diversas esferas, resultando no controle não apenas social mas de ideias individuais por parte de um sistema interessado apenas na manutenção da exploração da miséria. Construir uma utopia é, especialmente, encontrar maneiras de reagir.
Texto de Lucas Barreto Teixeira
Comentários
Postar um comentário