Por muitos anos, Portugal produziu uma quantidade impressionante de obras românticas. Tendo uma literatura predominantemente lírica, valorizando o país como nação e como terra saudosista, viu grandes nomes, como Garrett e António Feliciano de Castilho. Entretanto, insatisfeitos com o cenário cultural vigente, estudantes da Universidade de Coimbra uniram-se em um grupo composto por nomes como Antero de Quental e Teófilo Braga, inaugurando uma corrente de pensamento inspirada nos romances realistas franceses de Zola e Flaubert, além das novas ideias socialistas e da perspectiva científica do determinismo. Disruptivos, passaram a abordar de forma crítica o movimento ultrarromântico português, nomeado pelos jovens de "escola do elogio mútuo", por conta do caráter hipócrita dos poetas de tecerem comentários agradáveis a todas as obras produzidas pelo seleto grupo. Contudo, foi em 1865, com uma crítica explícita ao grupo dos jovens de Coimbra elaborada por Castilho, publicada no posfácio de "O Poema da Mocidade", de Pinheiro Chagas, que a tensão das escolas chegou em momento fulminante de atrito. No episódio chamado de "Questão Coimbrã", Teófilo e Antero publicaram uma resposta ao poeta, discursando largamente sobre a pobreza vista por eles na literatura romântica. Sem terem resposta de Castilho, os jovens de Coimbra fortaleceram seus princípios culturais e artísticos, aumentando a produção de manifestos, jornais e panfletos, tendo inclusive produzido palestras abertas sobre como o realismo deveria ser construído em Portugal - crítico e revelador. Em uma dessas palestras, foi convidado o estudante Eça de Queiroz, que discursou abertamente sobre sua visão do papel que a literatura deveria ter de servir como agente crítico da realidade. Não muito tempo depois, publicou, em fascículos, o primeiro romance realista português: "O Crime do Padre Amaro".
O romance de estreia de Eça de Queiroz carregava consigo as principais ideias dos estudantes de Coimbra, dando início à geração de 70 de Portugal. Apesar de circular nos meios intelectuais da época, não teve tanto reconhecimento antes da publicação da segunda edição encadernada após o estrondoso sucesso de "O Primo Basílio", o romance mais famoso do autor. Entretanto, a popularização do livro gerou um verdadeiro desconforto por conta das polêmicas abordadas ao longo do texto.
O romance acompanha o início da vida paroquial de Amaro, um jovem padre que, ao se hospedar em um quarto da casa de São Joaneira conhece Amália, a filha da proprietária, pretendida a outro homem, despertando uma paixão pecaminosa e anticlerical, resultando em um caso amoroso entre o beato e a mulher.
A crítica explícita ao clero residia no serviço falso empregado por ele. Ao descrever que Amaro se formara no seminário não por vocação e sim por coerção, Eça explicita a hipocrisia por trás das pregações dos padres. Afinal, o protagonista desde cedo, por conta de sua formação, desenvolveu uma postura de ser constantemente influenciável por terceiros. Tanto é que seu caso com Amália se consolida apenas quando descobre o caso entre São Joaneira e Cônego Dias, seu amigo conselheiro.
Também é imperativo destacar o olhar científico empregado pelo autor na elaboração minuciosa do caráter de seus personagens. Ao narrar a infância de Amaro e, posteriormente, a de Amália, dialoga com o naturalismo determinista, uma vez que estabelece uma relação de causa e consequência entre a origem e a personalidade adulta.
Apesar da forte crítica social empregada por Eça, sua obra também foi alvo de críticas literárias por parte de outros autores realistas. É o caso, por exemplo, de Machado de Assis, que ao ponderar sobre a obra do português destacou um viés negativo no trato das personagens femininas. Não apenas em "O Crime do Padre Amaro", mas também em "O Primo Basílio" e "Os Maias", as mulheres são constantemente tratadas de forma superficial enquanto responsáveis pela tomada das próprias decisões, visto que são, de maneira geral, facilmente manipuláveis por agentes masculinos. Tanto assim o é que, por ser criado em um ambiente predominantemente feminino, Amaro acaba por desenvolver o comportamento discutido anteriormente. É possível dialogar que Eça assim desejou o fazer, exatamente para denunciar como as mulheres eram tratadas socialmente na época. Em todo caso, vale ressaltar esse ponto intrigante de sua obra.
Polêmica e escandalosa. Pioneira e disruptiva. A obra de Eça de Queiroz guarda em si múltiplas responsabilidades, interpretando inúmeros papéis na história literária de Portugal. Sua importância é incalculável, tendo sido o principal ponto de ruptura com toda a tradição romântica portuguesa, sendo a maior influência a seus contemporâneos, encorajando a escrita de importantes escritores solidários a causa de Coimbra. Foi principal estímulo da resistência intelectual do país - e continua símbolo da arrogância artística tão peculiar e enriquecedora da juventude.
Texto de Lucas Barreto Teixeira
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