Florestas queimadas, Pandemia e isolamento social, desemprego e chefes de Estado incompetentes... é... 2020 não foi, nem de longe, um bom ano. Fica difícil lembrar, inclusive, de tudo que aconteceu nesse período todo. Talvez as memórias de um secretário da cultura repaginando um discurso de Goebbels e de ameaças de guerras fiquem nebulosas quando um Trump tenta, por meio de sua trupe supremacista, anular eleições nos Estados Unidos, ou quando terroristas de extrema direita tentam assassinar lideranças políticas bolivianas, ou quando um sujeito como Bolsonaro... bem... faz ou fala qualquer coisa que lhe vier na telha. É. 2020 foi... complicado. No entanto, o que não falta por aí são retrospectivas sobre os diversos altos e baixos sobre o ano. O que não falta, também, são listas de melhores e piores filmes, séries, jogos, livros... mas quis tomar a liberdade de falar sobre isso. Dessa forma, desde já peço desculpas por contribuir com a saturação de tal tema, mas nem tanto, visto que tais listas sempre são, no mínimo, fontes de entretenimento e, por sorte, servem como indicações de novas e diferentes mídias.
Parasita
Atuação impecável, direção astuta, roteiro instigante e um final pra lá de provocante. Parasita não apenas foi o melhor filme de uma excelente temporada (com JoJo Rabbit, a Vida Invisível, Bacurau, O Farol...) como também foi o melhor filme colocado nas telas de cinema há muito tempo. A originalidade de Bong Joon-ho é muito bem vinda para contar esse drama ao mesmo tempo moderno e atemporal, íntimo e universal.
Animal Crossing New Horizons
Não tenho palavras o suficiente para descrever o fenômeno cultural que Animal Crossing despertou. Ainda no início da quarentena, com tantos sentimentos dolorosos e confusos à flor da pele, o jogo não apenas foi responsável por unir pessoas ao redor do mundo inteiro em um ambiente seguro e confortável como também fez um bem geral a todos que precisavam de um mero conforto e palavras amigáveis de novas amizades. Não acredito que tenha como desvincular 2020 de tal obra.
O Poço
O Poço é um filme difícil de definir. A ambientação é aterrorizadora e cruel, os personagens são interessantes e o primeiro arco narrativo em geral é bem construída. Sendo sincero, lembrei-me em diversas cenas do conto que originou meu primeiro livro, Lágrimas de Sangue... isso até a parte final do longa. A analogia social do roteiro, embora simplista, é impactante, até se reverter em uma confusão metafísica e religiosa que não se sustentou. Ainda assim, foi um dos únicos filmes a serem lançados com certo impacto no ano.
Xenoblade Chronicles Definitive EditionSe algo conseguiu me emocionar esse ano, se algo conseguiu me trazer às lágrimas, se algo conseguiu me fazer engolir gritos de emoção, se algo conseguiu me tocar esse ano, esse algo é Xenoblade. Sendo a primeira vez que me deixei ser levado pelos cenários e pelas melodias de tal universo, fui levado a me apaixonar por cada detalhe, cada diálogo, cada personagem, cada jornada aqui proposta. Desde maio, quando coloquei as mãos na obra, tento desmembrá-la para colocá-la em texto ou em vídeo, mas cada vez que tento fazê-lo me sinto incapaz de resumir toda sua grandiosidade. Espero que ainda esse ano consiga fazer algo dessa dimensão, e espero que até lá mais pessoas tenham compartilhado do imenso gosto que é fornecido ao jogar Xenoblade.
Dr. Dolittle
Agora, se algo conseguiu me tirar dos nervos no início do ano, foi Dr. Dolittle. Não me entenda mal, o filme é medíocre, em todos os sentidos de sua concepção, mostrando-se ser nada mais que mero entretenimento inocente. Contudo, é tal mediocridade que me deixa tão irritado ao ver tal tipo de longa nas telas. É o produto em fórmula, feito conforme padrões de mercado e apenas visando o lucro. Sou um grande defensor da chamada "mídia de massa", mas há de se estabelecer que, ao criar uma obra, algo ali precisa dizer algo, despertar algo... e Dr. Dolittle acaba sendo apenas mais um dentre os milhares de produtos vazios e inocentes que limitam o espaço de obras valorosas.
Lovecraft Country
Assisti ao piloto da série por recomendações, sem antes ter me inteirado sobre suas especificações, e assim que os créditos subiram no final do episódio encontrei-me boquiaberto. Logo em seguida, fiz questão de encomendar o livro original e na mesma semana, quando a encomenda chegou, engoli as páginas, terminando o romance antes mesmo da estreia do segundo episódio. Tudo ao redor da história me encantou. A forma como os monstros são redefinidos a partir da perspectiva dos personagens, como clichês da literatura pulp são usados para criar reviravoltas, e o carisma do elenco... a produção tinha a faca e o queijo na mão para fazer uma das maiores séries de todos os tempos... então, as semanas foram passando, episódio por episódio elementos iam se redefinindo, até se transformarem em uma paródia do exagero que a obra original já era... no fim, Lovecraft Country se revelou uma pequena decepção, mas que me fez conhecer atores, diretoras e um livro espetaculares.Spiritfarer
Pare tudo que está fazendo e vá jogar Spiritfarer. Isso não é uma brincadeira. Passando despercebido em meio a tantos lançamentos de peso no meado do ano, o novo jogo da Thunder Lotus é uma obra-prima, uma joia rara. Com traços lindos e uma narrativa emocionante e dramática na medida certa, a obra convida-nos a tomar o lugar de Stella, uma adorável e carismática mulher que toma o lugar de Caronte e assume a responsabilidade de levar almas mortas ao além-vida. Para isso, entretanto, cada morto deve encarar uma jornada própria para se conciliar com seus demônios, e é Stella quem deve acompanhá-los em tais momentos. De toda forma, Spiritfarer não chegou a ter metade do reconhecimento que merecia, e deveria ser lembrado por muitos anos por seus inúmeros méritos.
Bom dia, Verônica
Lovecraft Country pode até ter me decepcionado, mas nada pode superar a frustração que senti ao ver a série adaptada do romance de Raphael Montes e Ilana Casoy. A produção se mostrou uma verdadeira bagunça, criando clichês em uma narrativa bem consolidada, quebrando a atmosfera geral do roteiro, e diluindo as personalidades fortes dos personagens em um ensopado de estereótipos sem carisma. Além da boa caracterização do assassino, não há muito que se possa salvar do seriado. E mesmo em tal personagem, cuja motivação no livro já era "estranha", para se usar um eufemismo, agora apelou para um racismo religioso ainda mais radical e não leva a nenhuma reflexão ou desconstrução. No geral, ao invés de consertar as falhas do material original, tal produção parece ter apagado os acertos e escancarou os remendos.Persona 5 Royal
Só de ouvir as primeiras notas de "Colors Flying High", a abertura do jogo, já sinto um arrepio no braço. Persona 5 é, em tudo que se propõe, impecável. Eis aí outra obra que gostaria de discutir com mais detalhes em um futuro texto ou vídeo, por seus temas profundos e sua abordagem psico-exotéricas na narrativa apresentada. Não há nada que se possa dizer de tal jogo além dos mais sinceros elogios.
Mank
Mank apareceu no meu radar apenas após seu lançamento, já no final de 2020, e não tardei a assistir ao longa, especialmente por adorar a carreira cinematográfica de Orson Welles, o gênio da mentira. E confesso que gostei de tal leitura sobre sua Magnum Opus, "O Cidadão Kane", retratando como Herman J. Mankiewicz escreveu o roteiro do longa, rendendo-o posteriormente o Oscar por sua escrita. A escolha estética do filme, filmado em preto e branco, a princípio pareceu apenas uma forma da produção de colocar um patamar acima do qual pertence, mas já acho que tal escolha se deve pelo jogo de maquiagem e sombra que a direção propôs para disfarçar as diferenças do elenco com personagens históricos. De qualquer forma, apesar do roteiro um pouco simples e explícito em suas mensagens, é um bom filme.
A Organização
Como disse no princípio da lista, não li muitos livros de 2020 durante o ano. Ainda assim, sendo um leitor ávido da jornalista Malu Gaspar, não pude deixar passar batido "A Organização", seu novo livro em que explora as relações mais íntimas da Odobrecht, de sua ascensão durante a ditadura militar até sua queda durante as investigações da Lava-Jato. É uma leitura necessária para se entender muitos dos fenômenos políticos atuais do país e, em especial, compreender de que forma grupos radicais foram capazes de tomar o poder.
Mulher Maravilha 1984
Eu sei que já coloquei Dr. Dolitlle na lista para criticar toda a produção do mercado cultural de massa... mas Mulher Maravilha 1984 definitivamente merece uma menção à parte. Após tantos anos com tantos filmes iguais de heróis, culminando em um evento cultural como Vingadores Ultimato, é difícil pensar que tais fórmulas poderiam ser reutilizadas sem algum tipo de evolução. Mulher Maravilha, no entanto, parece viajar ao passado, em um filme fraco, sem paixão, destruindo todo o significado da heroína, limitando-a a alguém dependente, com uma vilã tirada de Diário de uma Princesa e uma mensagem final sem qualquer sentido. Talvez Mulher Maravilha nem seja o pior filme de herói já feito, mas tanto pela saturação do subgênero quanto pelo desserviço da narrativa, ele vai ficar marcado como algo tenebroso por muitos anos.
Soul
Apesar de ter visto diversas animações ao longo do ano, posso apenas incluir Soul na lista, por conta das datas de lançamentos. Contudo, por mais que queira falar também sobre outras obras, a longa se mostrou muito competente em seu objetivo, estabelecendo uma narrativa belíssima ao redor das paixões do protagonista, criando discussões entre arte e vida e deleitando o público com personagens memoráveis e carismáticos. Um respiro de alegria em um ano tão triste, sem dúvidas.
O Cidadão de BemQuero reservar esse espaço para falar do lançamento do querido autor Maurício Gomyde, "O cidadão de bem". Antes de qualquer coisa, devo dizer que, por conta de seus temas densos e pesados, ainda não consegui chegar ao final. Ainda assim, queria tecer um comentário ou outro a respeito. Tendo como base a situação sociopolítica brasileira atual, o autor escreve seu livro mais carregado até então, narrando histórias de diversos personagens que se encontram em uma tragédia despertada pelo ódio da ignorância. Em meio a um suspense extremamente bem elaborado, Gomyde elabora um documento histórico de nossos tempos.
Hades
Personalidade e carisma são aspectos que deveriam ser almejados por qualquer obra midiática. E se Hades tem algo, de sobra, é personalidade e carisma. Com uma arte espetacular e um estilo de jogo que beira a perfeição, a Supergiant foi capaz de criar a melhor adaptação da mitologia grega até hoje, deixando poetas renascentistas irados de inveja. A partir de Zagreus, filho de Hades com Perséfone, o panteão do Olimpo se abre, revelando intrigas pessoais, suas ambições e invejas, mergulhando de cabeça na essência dos mitos. Além disso, a narrativa de Hades é apresentada de forma inovadora, exclusiva à forma como a mídia se apresenta e vai muito além das expectativas de qualquer um. Imperdível.
Immortals Fenyx Rising
Se Hades soube usar a mitologia melhor do que ninguém, Fenyx Rising conseguiu jogar todo seu potencial no lixo. Muitas coisas me desagradaram aqui, desde a forma como a mecânica de Breath of the Wild é usada com movimentos estranhos e progressão baseada em inúmeras símbolos financeiros confusos, até como a história se agarra em um senso cômico antiquado e... sem graça. Sem paixão, parece ser só mais um em um mar de produtos esquecíveis.
Pikmin 3 Deluxe
Por fim, chegamos a Pikmin. O que se há dizer desse jogo? Tudo aqui se encaixa tão bem, em uma experiência tão encantadoramente divertida e cheia de charme, que qualquer elogio sincero poderia parecer bajulação ou exagero de alguém desesperado por mais conteúdo da franquia. Pode até ser o segundo caso, mas tudo em Pikmin 3 indica conforto e alívio, sentimentos muito caros nos presentes dias.
Pois é. Colocando nessa perspectiva, 2020 parece até ter sido um ano como qualquer outro, com seus erros e acertos, altos e baixos, coisas boas e ruins. Após todo o esforço de ativamente lembrar de todos os itens aqui apresentados, fico feliz de, ao menos, ter conseguido passar o ano com alguma experiência que poderá ser carregada com o tempo. Aliviar os fardos da alma; não seria esse, ao acaso, o propósito da arte?
Texto de Lucas Barreto Teixeira
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